Terrorismo no Norte de África e Sahel ameaça Portugal, Espanha e Itália
Desfecho negativo das negociações sobre a Base das Lajes pode prejudicar relações com os Estados Unidos, avisa Rui Machete na abertura perante embaixadores e diplomatas portugueses.
“A situação de instabilidade securitária interna propícia às actividades de vários grupos terroristas e milícias armadas e as interligações crescentes que se têm observado entre movimentos terroristas e diversos tipos de tráfico ilícito, com realce para o narcotráfico são preocupantes”, admitiu o chefe da diplomacia portuguesa. “A Europa e, em particular a Península Ibérica e a Itália, encontram-se cada vez mais ameaçados por estes desenvolvimentos."
Numa intervenção de pouco mais de 21 páginas sobre a actividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), o seu titular abordou, em dois momentos, esta ameaça. Primeiro, referindo-se à situação na Síria e no Iraque depois de, em 29 de Junho de 2014, se ter reivindicado o Califado ou o chamado Estado Islâmico (EI). Depois, tratando os últimos desenvolvimentos no Norte de África.
“O chamado califado islâmico, evocando a antiga forma teocrática medieval do exercício do poder, resume em si todo um programa de acção política e arroga-se uma legitimidade religiosa que anteriores grupos terroristas não possuíam”, alertou Machete. “O Califa assume-se como um descendente do Profeta, um chefe político, um comandante militar, a quem todos devem obediência, a sua missão é, para além do governo da comunidade, alargar o território e o número dos seus fiéis”, especificou.
Esta reivindicação inclui o Al-Andaluz, o território da Península Ibérica, ou seja, Portugal e Espanha. “Com este regresso a um ideário dos tempos medievais abandona-se de um só golpe a ideia da Democracia, do Direito Internacional, dos Direitos Humanos, do Estado Nação e das suas fronteiras, mas mantém-se a referência ao território e à organização administrativa que lhe empresta as características de um proto Estado”, analisou o chefe da diplomacia portuguesa.
Uma característica que diferencia o autoproclamado EI de outros grupos terroristas. “A sua mensagem é dotada de um carácter messiânico radical que não se dirige apenas a alguns países ou regiões mas que aspira a ser universal”, observou Rui Machete.
O ministro destacou, ainda, as formas peculiares de actividade do EI: a comunicação pessoa-a-pessoa, o recurso aos meios de comunicação de massa, como a televisão, redes sociais e tecnologias mais modernas. Tudo isto “tem permitido um terrorismo de contacto íntimo e eficaz”.
Daí o alerta: “Não tenhamos dúvidas, estas organizações terroristas têm hoje acesso ao quotidiano dos jovens que consideram alvos preferenciais de recrutamento.” Com o fim das normas do Direito Internacional, “só a força das armas é capaz de se opor à acção brutal dos opressores, os quais submetem os seres humanos que dominam à doutrina totalitária que os orienta ou, pior ainda, a uma vontade inteiramente arbitrária”.
Dito de outra forma: estamos “perante um inimigo que requer, para ser vencido, instrumentos de combate mais sofisticados e uma abordagem militar diferente”. Razão pela qual, desde Novembro, Portugal está envolvido na coligação internacional, que reúne 60 países e organizações.
Como mancha de azeite, o EI tem estendido a sua actividade. Estados falhados, como a Líbia, albergam campos de treino das suas milícias. Mais a Sul, a complexa situação no Golfo da Guiné permite toda a espécie de tráficos – de drogas aos de seres humanos – e uma actividade amparada, também, no negócio de armas, pirataria e comércio ilegal de petróleo. Esta é a infra-estrutura económica de organizações radicais que operam naquela área.
“O Norte de África e a região saheliana e subsaariana também têm sido atingidos pelo fenómeno do terrorismo”, concretizou o chefe da diplomacia portuguesa. Uma realidade que ameaça países que participam com Portugal no “processo de diálogo 5+5” – Marrocos, Tunísia, Argélia, Mauritânia e Líbia. Com algumas das capitais destes Estados, como Rabat, Tunes e Argel, Lisboa realiza cimeiras de cooperação e tem fluxos económicos bilaterais. O que, por si só, justifica a preocupação.
A Grécia e o Reino Unido como problema
Noutro ponto da análise das relações internacionais, Rui Machete referiu-se à relação transatlântica com os Estados Unidos. Neste caso, o chefe da diplomacia e antigo presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, referiu-se às implicações do futuro da base militar das Lajes, na ilha açoriana da Terceira, nas relações com os Estados Unidos.
“O Governo português continua a manifestar a sua total disponibilidade para trabalhar com os Estados Unidos na procura de uma solução que garanta a maximização quanto à utilização da Base das Lajes”, disse o ministro. “Seria aliás prejudicial para as nossas relações bilaterais que Portugal não tivesse um resultado positivo neste longo e complexo processo”, garantiu.
Sobre a União Europeia (UE), Machete defendeu menos assimetrias ao financiamento dos Estados-membros, sobretudo os que foram mais afectados pela crise. Não evitando uma nota de optimismo sobre a União Europeia (UE), o titular da pasta dos Estrangeiros referiu-se a desafios. Entre os quais, a união bancária e o fortalecimento dos instrumentos de política económica. “Chegou o momento de um verdadeiro debate sobre a ambição da UE em matérias decisivas para a competitividade das nossas economias, como o mercado único, o dossiê energia ou as políticas de industrialização, inovação e desenvolvimento”, disse.
Como orador convidado da sessão de abertura do seminário diplomático, iniciativa por ele montada enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Durão Barroso falou da sua experiência de dez anos à frente dos destinos de Bruxelas.
Numa intervenção claramente optimista, o antigo presidente da comissão referiu que a crise económica dos últimos anos não foi prevista pelas organizações internacionais. “Não foi antecipada pelo FMI e outras instituições, à excepção do Banco Internacional de Pagamentos”, referiu, omitindo qualquer referência ao labor da comissão que presidiu durante uma década.
Durão Barroso referiu-se aos contornos da crise, “a primeira da era da globalização”, com um exemplo gráfico: a crise grega pôs em causa a estabilidade mundial, a crise começou por ser financeira e veio a desembocar numa crise económica e social, e na falência das elites.
“Não vamos voltar ao status quo antes desta crise”, previu, referindo o que definiu como resiliência da UE – manutenção do euro como moeda única e alargamento da zona euro de 15 para 19 países, a e União de 19 para 28 estados-membros. “A comissão europeia lutou por uma visão de conjunto, foi um processo progressivo, não foi fácil reunir o consenso”, garantiu.
“Não actuámos apenas como bombeiros mas, também, como arquitectos”, recordou, reconhecendo que ainda estão por edificar partes do edifício europeu, como a união económica e monetária. Mas congratulou-se com outros passos. “Nos mecanismos estruturais que dão mais poderes à comissão europeia – como vetar o Orçamento de um estado-membro antes deste ser apresentado ao Parlamento nacional”, exemplificou, abordando o processo de transferência de soberania.
“Na resposta à crise, os passos foram sempre para mais e não para menos, com muitas hesitações e polémicas”, admitiu Barroso. “As peças a favor da integração são mais fortes que as contrárias, precisamos de solidariedade e responsabilidade, uma exigência que se traduz em respeitar os compromissos assumidos, nomeadamente o Pacto de Estabilidade e Crescimento”, disse.
Sobre os desafios imediatos, Durão Barroso referiu a subida das correntes eurocépticas e nacionalistas, o envelhecimento populacional e o desequilíbrio demográfico, e a necessidade de os estados-membros não considerarem a UE como uma potência exterior.
Mais directo foi quando referiu a Grécia e o Reino Unido como dois “perigos” no horizonte comunitário. “Aceitamos todos os resultados eleitorais, mas os países devem assumir as suas responsabilidades e obrigações a nível internacional”, advertiu, antevendo a ida às urnas dos helénicos a 25 deste mês.
“Penso que o Reino Unido vai continuar na União Europeia, mas quando se lança um processo destes há apenas uma lógica de sim ou não, muito sensível”, comentou a promessa de referendo sobre a continuidade na UE de David Cameron.