Hamlet tem dúvidas sobre a sua vingança em todo o mundo

Esta segunda-feira, o Centro Cultural de Belém recebe a data portuguesa da ambiciosa digressão mundial de Hamlet pela companhia inglesa Shakespeare’s Globe Theatre. Será a etapa número 65 de um projecto que pretende apresentar a peça em todos os países do mundo ao longo de dois anos.

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O nigeriano Ladi Emeruwa e o inglês Naeem Hayat partilham o papel de Hamlet nesta encenação cortesia de Bronwen Sharp
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“O teatro tinha-se transformado numa espécie de zona de guerra”, conta Tom Bird, produtor da companhia fundada em 1996 para representar e divulgar a obra de Shakespeare, instalada num edifício que tenta replicar o Globe original, onde no início do século XVII o dramaturgo apresentou muitas das suas peças. “Nós insistimos, dissemos que queríamos mesmo ir e lá nos encontraram uma sala alternativa. Felizmente, tudo acalmou nas semanas seguintes e seguimos para Kiev.”

Esse foi, até agora, um dos momentos mais marcantes de uma ambiciosa digressão que o Globe Theatre empreendeu em Abril de 2014 (ano do 450º aniversário do nascimento do autor) e que tem por objectivo apresentar em todos os países do mundo, ao longo de dois anos, uma das mais emblemáticas obras de Shakespeare. Quando, esta segunda-feira à noite, o elenco subir ao palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, essa será a 65ª escala da apresentação planetária de Hamlet.

A ideia, de simples enunciação mas complexa, onerosa e demorada concretização, surgiu no Verão de 2012, quando por alturas dos Jogos Olímpicos em Londres o Globe fez do seu festival Globe to Globe um outro encontro de culturas. Foram 37 companhias de todo o mundo, da Índia ao Brasil, a levar as suas produções de textos de Shakespeare até Londres e, no final de cada representação, acabavam invariavelmente por retribuir o desafio. Tom Bird recorda o entusiasmo provocado por essa oportunidade de fazer a viagem inversa. “Depois pensámos: se todos eles nos apresentarem aos seus amigos do país do lado talvez também possamos ir a esses sítios. E percebemos que as pessoas estariam interessadas em ver o Hamlet pelo Globe.”

Claro que, em muitos casos, não é a peça em questão a revelar-se determinante. Na Ucrânia, lembra Bird, os membros do Globe foram saudados pelo público por terem a coragem de se apresentar num território onde poucos, na altura, se atreveriam a ir. Tal como em Mérida, a cidade mais populosa do sudeste mexicano, onde montaram o espectáculo diante da Catedral de Yucatán, numa noite que acreditam ter sido memorável para todos. “A autarquia possibilitou que os bilhetes fossem gratuitos. E então vieram 2 mil pessoas, parecia que toda a cidade tinha vindo assistir – muitas delas nunca tinham visto não apenas Shakespeare, mas qualquer peça de teatro na vida. E adoraram.”

Esse confronto com cenários e culturas diferentes em cada paragem funciona como um dos grandes estímulos para a apresentação do mesmo texto durante os dois anos do projecto. Depois de Portugal, por exemplo, o Globe segue para um antigo teatro em Argel, passando depois por Tunísia, Egipto (Bibliotheca Alexandrina, a nova biblioteca de Alexandria), Eritreia, Sudão, Etiópia e Djibouti, continuando África fora durante os próximos meses. “O desenho da digressão é o de tentarmos mostrar a peça em todos os países, mas temos de ser muito flexíveis em relação à sala onde nos apresentamos”, comenta o produtor. “Na Europa apresentamo-nos normalmente num teatro, mas depois vamos para muitos locais onde não existem teatros profissionais e actuamos também em sítios improvisados ao ar livre. Claro que o sentimento do espectáculo se altera em função disto, de acordo com a dimensão do público ou se as pessoas percebem bem inglês.”

As grandes dificuldades actuais para a concretização do objectivo global encontram-se na capacidade de penetrar em alguns cenários cuja segurança é mais difícil de garantir. É o que acontece com a Síria, o Iémen, o Sudão do Sul e a República Centro Africana.

Dinamarca, Abril de 2016

Entre todo o riquíssimo reportório shakespeariano possível, o Globe escolheu correr o mundo com Hamlet. Em parte, explica Tom Bird ao PÚBLICO, porque “ao pensar nos actores que teriam de andar em digressão com a peça e representá-la quase todos os dias durante dois anos” tinham de assegurar-se de que “continuariam a descobrir novidades no texto no fim desse período”. “Hamlet tem muitos níveis e levanta muitas questões”, considera, “mas ao mesmo tempo não dá respostas. É impossível fartarmo-nos da peça”. O facto de constituir igualmente um dos textos mais populares do autor de Stratford-upon-Avon foi também tido em conta, para que, na medida do possível, o público não entrasse “às cegas” em cada sala. Como é natural, também todo o substrato político do texto e a sua actualidade justificam a escolha.

Sendo uma história movida pela vingança – de Hamlet em relação ao tio, responsável pelo assassínio do seu pai para lhe tomar o trono –, coloca igualmente em palco traições várias, uma sede cega pelo poder, a dúvida moral sobre a vingança e o amor de Hamlet por Ofélia, assim como um jogo de representação dentro da representação.

A obra de Shakespeare assinada no início do século XVII – com três distintas versões, nenhuma delas reconhecida como a oficial – tem provado conter um alcance infindável. Não só nas múltiplas leituras que oferece, como aquela que a companhia portuguesa Mala Voadora levou a palco em 2014, a partir da versão mais crua do texto conhecida como “quarto mau”, mas também pela inspiração que tem oferecido a textos de outros dramaturgos, como fez Heiner Müller em Máquina Hamlet (1977), ou Tom Stoppard em Rosencrantz and Guildenstern Are Dead (1966), olhando para a história a partir de duas personagens secundárias, os cortesãos de Hamlet que acabam mortos no seu lugar.

A versão do Globe será naturalmente um exemplo clássico de uma das obras maiores de Shakespeare. E tenta também corrigir um problema que Bird tem identificado como frequente pelo mundo fora. “A primeira experiência de cada um com esta obra deveria acontecer numa sala de teatro ou numa sala de aula com uma leitura em voz alta, dirigida por um professor de teatro. E não pela leitura num livro.” Daí a opção por um ambiente informal na representação deste Hamlet: “Os actores falam com o público enquanto este vai chegando, deixamos uma luz acesa no teatro e gostamos que as pessoas sintam que se trata de um ambiente de conversa.”

A digressão, muito simbolicamente, terminará em Abril de 2016, na Dinamarca, mais concretamente no Castelo de Elsinore – o cenário privilegiado da tragédia de Shakespeare.

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