“De velho se torna a menino. E nós voltámos à escola outra vez”

Com fundos comunitários, uma escola foi transformada para acolher a sede de um grupo coral. Hoje é espaço para os ensaios de um grupo de cante alentejano e, para alguns dos cantadores, voltar à escola onde estudaram é fechar um ciclo de vida

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Há 50 anos, havia seis alunos na quarta classe: um deles era Serafim Silva. Na única sala de aulas da escola, estudavam os alunos dos quatro anos com uma só professora. Havia três filas de carteiras, uma para cada ano, e no fundo da sala ficavam os alunos da “primeira classe”, por serem mais.

Foi ali na aldeia de Telheiro, concelho de Reguengos de Monsaraz, que Serafim Silva, hoje com 64 anos, fez o ensino primário. Relembra que a estrutura da sala se mantém como era. O quadro ficava na parede ao lado da secretária da professora, na outra parede ao lado ficavam os mapas nos quais tinham de ir localizar os países que a professora pedia e do lado oposto ficavam as janelas que ainda lá estão.

“Era aqui onde se cumpriam os castigos, como as orelhas de burro. Abria-se a janela e os alunos ficavam ali um quarto de hora com orelhas de burro a cumprir o castigo.” Serafim ainda se lembra bem do sítio onde ficava a sua carteira, logo à frente, onde se posiciona de pés juntos para mostrar.

Foi em 1957 que entrou na escola, saiu em 1961. Nessa altura, rapazes e raparigas partilhavam a mesma sala de aulas, mas o mesmo não acontecia no pátio. “Havia um alpendre, que era um ponto de recolha de rapazes e raparigas em tempo de chuva. Mas a parte circundante da escola era destinada às raparigas, onde elas faziam canteiros e semeavam flores durante todo o ano. A parte de baixo, maior, tinha uma faixa de eucaliptos de cada lado, onde os rapazes jogavam à pata, à bola, ao eixo. Ao lado, cavavam e semeavam favas, ervilhas e batatas.”

Da escola ao campo
No final dos quatro anos, foi dispensado do exame oral. “Fiz a prova escrita num dia, no outro fui guardar gado.” Andou no campo até aos 14 anos, quando arranjou um trabalho numa empresa entretanto desmontada com a construção da barragem do Alqueva.

O que o salvava, conta, eram as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. “Fui um assíduo consumidor de livros. Depois tirei um curso de música por correspondência, um curso de rádio, electrónica e televisão, e um de desenho técnico”. Estudou à noite e acabou o ensino profissionalizante, já era casado e tinha uma filha.

À escola primária onde andou, Serafim só voltou para os ensaios do grupo de cante alentejano, do qual hoje é mestre (ensaiador). “Nunca daqui abalei, assisti às transformações todas da escola.”

Quando ficou devoluta, a câmara cedeu a escola ao Grupo Coral e Desportivo da Freguesia de Monsaraz, uma associação da qual o grupo de cante faz parte. A cedência a uma associação é o caso mais comum de reutilização das escolas – são 796 as escolas ocupadas por associações, núcleos, grupos ou sociedades, representando um terço do destino dado às escolas com novas funções.

“Quando regressámos aqui, com a função que a escola agora tem, disse para o meu colega: ‘Rapaz, nós já vamos estando velhotes. De velho se torna a menino. E nós voltámos à escola outra vez’.”

Casa do Cante
A escola primária na aldeia de Telheiro, hoje com 147 habitantes, foi encerrada em 2003 por ter poucos alunos. Para além desta, outras três foram desactivadas no município – numa funciona a Casa das Avós, noutra a sede de uma associação de caçadores e na terceira está em desenvolvimento um projecto de astroturismo.

Até então o grupo coral ensaiava numa outra escola desactivada, muito antiga, ainda dentro das muralhas do castelo, que deixou de estar disponível. “Ficámos sem sítio para ensaiar. Fizemos um protocolo com a câmara para a utilização deste espaço que estava devoluto e eles acederam ao nosso pedido”, conta Fernando Cardoso, presidente do grupo de cante e antigo aluno da escola primária de Telheiro.

Em colaboração com a câmara, fizeram uma candidatura do projecto de renovação da escola aos fundos comunitários do Proder (Programa de Desenvolvimento Regional). A candidatura foi aceite e nasceu a Casa do Cante.

Foi mantida a estrutura exterior e interior da escola, excepto o alpendre – passou a estar fechado para funcionar como bar e sala de convívio. A antiga sala foi equipada para ter condições acústicas para a recolha de áudio e a entrada da escola onde antigamente estavam os cacifos funciona hoje como hall onde estão expostas fotografias do grupo.

“Os grandes custos da casa do cante foram financiados por fundos comunitários do Proder. Teve de ter uma obra estrutural, que implicou condições acústicas para gravação de som, e o espaço exterior teve de ser adaptado para eventuais actuações. Estamos a falar de um projecto na casa dos 40 ou 50 mil euros”, explica o presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, José Calixto.

Parar onde se começou
São 27 os cantadores que fazem parte do grupo, todos alentejanos, na sua maioria naturais do concelho. Todas as sextas-feiras, às 20h30, depois do jantar, realizam-se os ensaios, abertos a visitantes, na mesma sala onde Serafim Silva e Joaquim Cardoso estudaram.

Serafim ainda se lembra das rivalidades entre os rapazes de freguesias diferentes, assim como se lembra de pedir carrinhos de linhas às costureiras da aldeia para as brincadeiras em grupo. “Telheiro era talvez a aldeia mais industrializada do concelho, havia aqui padeiros, calceteiros, latoeiros, correeiros, alfaiates e também mercearias e uma loja de fabrico de telhas, de onde vem o nome da aldeia.”

Hoje, 50 anos depois, para além de Serafim Silva, também Joaquim Cardoso vê o regresso à escola como o fim de um ciclo. “Vivi sempre aqui. Tenho feito sempre aqui a minha vida e sempre tive contacto com a escola. Voltar para aqui não é mais do que dizer que o sítio onde comecei é um dos sítios onde se calhar vou parar.”

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