Uma sociedade de risco, um sociólogo em pleno
Ulrich Beck, que ainda em 2014 esteve em Portugal para falar sobre a Europa, morreu no dia 1 de Janeiro. A notícia da sua morte só foi anunciada neste sábado. Tinha 70 anos e morreu de ataque cardíaco. O sociólogo Gustavo Cardoso explica a importância da sua obra.
Beck foi um dos grandes sociólogos europeus contemporâneos, uma categoria que partilha com seus pares e amigos como o catalão Manuel Castells, os ingleses Anthony Giddens e John Thompson ou o francês Michel Wieviorka. A sua obra A Sociedade de Risco, traduzida em mais de 30 línguas, coloca-o entre os três grandes sociólogos alemães do pós-guerra com maior influência mundial, a par de Jürgen Habermas e de Claus Offe.
Beck fazia parte da geração de sociólogos europeus do pós-guerra que conheceram uma Alemanha dividida, que viveram a criação da Comunidade Europeia e que se habituaram ao mundo dividido por uma "cortina de ferro" com início na Europa.
A geração de Beck foi iniciada, na sua carreira de sociólogos, numa abordagem marxista, mas acabou por viver a queda do Muro de Berlim e compreender que apenas o recurso ao conceito de luta de classes não lhes permitiria compreender as desigualdades e as forças em oposição num mundo cada vez mais globalizado. Beck, tal como muitos outros alemães, viveu o fim da Guerra Fria, mas esteve sempre ciente que esse fim estava muito longe de anunciar o fim da História e das contradições entre quem exerce o poder e aqueles que vivem o dia-a-dia das consequências das decisões políticas e económicas nas nossas sociedades.
A obra mais conhecida de Beck, A Sociedade de Risco, foi publicada originalmente em 1986, mas existem outras obras suas igualmente fundamentais na influência do pensamento sociológico e político contemporâneo, como por exemplo: Ecological Politics in An Age of Risk (1995), Democracy without Enemies (1998), What Is Globalization? (1999) e Power in the Global Age (2005). Beck estudou temáticas tão diferentes, mas inter-relacionadas, como a modernização, a reflexividade, a globalização, a individualização, a transferência de poder do trabalho para o capital ou o cosmopolitismo.
Beck tentou sempre responder a como poderia a sociologia lidar com a transformação radical global introduzida nas nossas sociedades pelas crises financeiras globais, pela destruição ambiental em larga escala, pelo aquecimento global ou pelo enfraquecimento da democracia, dos estados e das suas instituições.
A sociologia nasceu para o estudo das sociedades no quadro dos estados-nação. Beck questionou ao longo de toda a sua obra como lidar com a vida em sociedade quando a acção e as decisões se deslocam para o plano global mas a maioria das populações continua a viver localmente.
Beck foi um sociólogo do seu tempo. Nasceu em 1944 num território então alemão e que hoje é polaco. Viveu o despontar dos interesses ecológicos nas sociedades contemporâneas europeias e a consciencialização do perigo da acção humana sobre o ambiente em função da experiência vivida através de grandes catástrofes ambientais ou da generalização de que a acção humana na modernidade pode colocar em causa a própria vida no planeta.
Sociedade de risco
Foi esse viver contemporâneo alemão e depois europeu que o levou a desenvolver a sua teoria da sociedade de risco. A importância do conceito de sociedade de risco pode passar desapercebida no nosso dia-a-dia, mas cada vez que lemos um jornal ou vemos um telejornal estamos a viver essa sociedade de risco, pois temos a noção do perigo que é viver na nossa época.
Temos a noção dos perigos que corremos por via das alterações climáticas, da poluição produto da radioactividade das centrais nucleares que explodem ou podem explodir, das contaminações alimentares em larga escala, das epidemias modernas ou renascentes. No entanto, não entramos em pânico perante o risco, vivemo-lo e assimilamo-lo, seja opondo-nos às suas causas, seja exigindo que quem governa, quem detém a produção, quem é proprietário cumpra as suas responsabilidades para com os restantes, protegendo-os do risco. Esta visão do mundo, que é a nossa, é radicalmente diferente de outras épocas em que o risco não era “nosso conhecido”. A reflexividade inerente ao conhecimento do risco era ausente e Beck soube explicar-nos porque o nosso mundo era diametralmente diferente e qual o poder que nos era conferido, ao podermos agir sobre o risco e mudar as nossas sociedades.
Beck foi um sociólogo e investigador mas também um intelectual europeu activo. Foi-o quando aceitou em 2011 o convite da socialista Martine Aubry para escrever no livro Pour changer de civilisation, dissertando sobre a necessidade de uma política interna global que rompa com as “cinco cegueiras” associadas à política nacional na era de globalização.
A primeira das “cinco cegueiras” políticas, segundo Beck, é a “cegueira global”, sintetizada na expressão “não se pode fazer política contra os mercados”, uma afirmação que esconde o facto de serem as próprias acções dos políticos que criam essa pretensa impotência política.
A segunda é a cegueira “nacional”, ou seja, o excesso de confiança na acção ao nível nacional. Assenta na ideia de que será possível regressar a uma bem-sucedida gestão interna, através de políticas dirigidas exclusivamente ao espaço nacional.
A terceira cegueira é a “neoliberal”, ou seja, acreditar que com o fim da Guerra Fria a globalização neoliberal solucionaria tudo – ideia profundamente arrogante e errada. Os riscos globais de mudança climática, as crises financeiras, o terrorismo e as catástrofes ecológicas, como as do Golfo do México, demonstram que essa perspectiva é um erro de proporções bíblicas.
A quarta cegueira reside no “neomarxismo”, ou seja, na defesa de princípios que nos impedem de ver o “novo”: por exemplo, a transferência de poder do norte para o sul do planeta, do Atlântico para o Pacífico, do dólar para o euro ou a quebra de estatuto do velho centro euro-americano enquanto exemplo e autoridade moral.
E, por último, a “quinta cegueira”, a da ilusão tecnocrática, trocando processos por resultados e menorizando a importância da democracia e da liberdade.
Desde o início da crise global de 2008 que Ulrich Beck assumiu um papel público de crítica ao funcionamento das instituições alemãs na gestão da crise nos estados periféricos do Euro. Para Beck a chanceler alemã, Angela Merkel, exemplifica um princípio de orientação política que pode ser designado por “merkiavelismo”. Como dizia Beck, o que vemos na crise do euro é a construção europeia de uma Europa alemã. No fim de contas, a defesa da austeridade constitui um pilar da prática do “merkiavelismo”, com vista à construção de uma Europa e de um euro alemães.
A sociologia é o estudo das sociedades e o papel dos sociólogos é duplo. Por um lado, dar atenção ao que os rodeia e compreendê-lo; por outro, ajudar à mudança social fazendo uso do seu conhecimento sobre a realidade. Ulrich Beck foi um sociólogo em pleno.
Gustavo Cardoso é investigador do CIES-IUL em Lisboa e investigador associado do Collège d'études mondiales da FMSH em Paris