O Portugal de Torga

Transmontano, português, ibérico e cidadão do mundo.

No entanto, Jacinto do Prado Coelho (fazendo uma analogia com Unamuno) emitiu a opinião  de que o Portugal de Torga é um Portugal inventado e que na obra de Torga há um contínuo sentimento contra os portugueses. Será melhor citar:  “A sua obra é ele e a Natureza, ele e Portugal, um Portugal que, em parte, o fez, mas que, em parte, ele inventou” (...) Mais: “a sua obra é ele contra a natureza; ele contra os portugueses, numa luta incessante que resulta dum invencível amor a Portugal”. (Ao Contrário de Penélope - pág. 272 ).

Discordo de ambas as opiniões. O Portugal de Torga é um Portugal percorrido e vivido palmo a palmo. Desde Trás-os-Montes ao Alentejo, desde o Minho ao Algarve. Desde os Açores à Madeira. Também inclui as antigas colónias de África, o território de Macau e, sobretudo, o Brasil onde passou alguns anos da adolescência e nunca mais esqueceu Minas Gerais e os sinais luminosos do Cruzeiro do Sul.

A posição crítica de Torga em relação a Portugal e a que não falta, por vezes, a contundência polémica, é, em relação, a um outro Portugal para uso caseiro e para lançar no estrangeiro. Era o Portugal do salazarismo, confecionado a partir de António Ferro, no Secretariado da Propaganda Nacional. Torga orienta-se pelo Guia de Raul Proença, uma notável obra coletiva que Luís da Câmara Reys considerou “o maior livro de amor e devoção a Portugal depois de Os Lusíadas.”

 São Martinho da Anta, onde Miguel Torga nasceu, que se manteve sempre ligado e em cujo cemitério quis ficar sepultado surge, na maior parte das vezes, como referência. Dir-se-ia um paraíso original, marcado pelas energias cósmicas e os fortes vínculos ancestrais. Da terra e dos homens.

Torga nunca se afastou das raízes do coração agreste de Trás-os-Montes, “léguas e léguas de chão raivoso, eriçado, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve”. Mais ainda: “o reino maravilhoso (...) dos homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra.

Tem uma ligação profunda com este universo, que é a génese dos primeiros (e inesquecíveis) dias da Criação do Mundo e de inúmeras páginas do Diário. Para melhor sentir a terra, vai à caça, entrega-se à corrida rápida da lebre e do coelho ao tiro estimulante na raposa, à própria sombra em movimento dos pombos bravos. “Nasci - escreveu no Diário - para falcão da serra, e não para codorniz de baixio. Nos lavados ares do monte, tudo me excita e os versos nascem às catadupas”. “Aqui (refere-se a Coimbra) tiro-os a fórceps como fetos monstruosos que não querem viver”.

Permaneceu quase sempre neste universo envolvido pela luz  das serras do Larouco, do Barroso e da Padrela, agarrado aos penhascos alterosos, aos fustes imponentes dos carvalhos, aos cumes das montanhas cobertas de neve, aos dourados outonais dos castanheiros, à purpura escaldante dos vinhedos nas encostas.

Mas não se fixou apenas, no Reino Maravilhoso, percorreu o País de Norte a Sul. Interrogou, no Minho e nas Beiras, muralhas medievais e torres carregadas de história e de lenda. Caminhou através da lezíria ribatejana inundada de sol ou envolvida de névoa e de chuva, com touros, cavalos e campinhos; avançou até às vilas brancas do Alentejo, de ruas empedradas e janelas com grades, pequenos mundos na extensão da planície em que o vermelho em brasa dos fins de tarde enche de espanto as copas dos sobreiros recortadas na distância.

Prendeu-se, ao litoral para nos embrenhar na faina da pesca e na agitação das lotas. Demorou-se, nas praias selvagens, perante um mar transparente, por vezes viril, e o apelo dos largos horizontes. “Mar! Enganosa sereia rouca e triste!? Foste tu quem nos veio namorar. E foste tu depois que nos traíste”.  Sagres constituiu para Miguel Torga um diálogo com os navegadores e as descobertas, a aventura e a coragem, a apoteose e a fatalidade.

Miguel Torga sobretudo no livro Portugal e nos sucessivos tomos do Diário estabelece comparações, dilucida influências, observa e analisa o que escreveram portugueses e estrangeiros. Caracteriza as diferenças que singularizam as regiões: a montanha, a planície e a presença do mar. Detém-se no litoral e no interior, na cidade e no campo; em pormenores relativos à alimentação, ao vestuário, aos divertimentos, a tudo quanto  reflete o meio, o clima, os interesses e necessidades nas várias zonas do País. Examina  as tradições universitárias e as práticas religiosas, em que se concilia o sagrado e o profano.

Miguel Torga identifica e reencontra o povo mais enamorado da Europa. Povo que inventou o puro amor e consagrou, na literatura e na arte, o que  morre de amor. Outro sentimento primordial é a saudade. Coexiste com a tendência para o sebastianismo, o mito do encoberto. Buscar a esperança por entre nevoeiros cerrados.

Tudo isto se traduz na melancolia, na angústia latente, na bondade resignada e, paradoxalmente, em surtos de alegria, que no entusiasmo da dança se converte na vertigem em movimento, em canto orgíaco. Miguel Torga aborda o complexo de inferioridade, muitas vezes, notório, entre os portugueses: a atitude de submissão e imitação de tudo o que vem de fora, enquanto se desdenham as iniciativas e realizações dos próprios portugueses. Daí, também, as insólitas manifestações de orgulho nacional, as rivalidades locais, a maledicência insensata e devastadora.

Estes e outros defeitos não anulam muitas qualidades demonstradas, por exemplo, no comportamento assumido na diáspora. Também aprofunda as razões que determinaram a expansão na África , no Brasil e no Oriente ; o sentimento de solidariedade humana, para com indivíduos radicados nas mais diferentes partes do mundo. Destaca a componente afetiva, a cordialidade e simpatia do português  no mundo, que permitiram o encontro de padrões de vida, de civilização e de cultura, a fraternidade entre os povos um conjunto de fatores de identidade que merecem ser propostos ao conhecimento e reflexão dos próprios portugueses.

Miguel Torga galga os limites físicos do território:” A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva: mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirenéus”. “Há no meu peito, observa noutro passo do Diário, angústias que necessitam da avidez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular”.

Mas não é só peninsular, insere no contexto da Ibéria, Fernão de Magalhães, com quem se identifica na ansiedade perscrutadora dos oceanos, sob o signo das terras achadas: “Ter um destino é não caber no berço / onde o corpo nasceu / É transpor as fronteiras uma a uma / E morrer sem nenhuma, / às lançadas à bruma / a cuidar que a ilusão é que venceu”.

Trasmontano, português, ibérico e cidadão do mundo, Miguel Torga atingiu a dimensão universal através  do confronto com a terra, a aliança da Geografia com a História e a Antropologia. De tudo o que faz parte do ar que se respira, entra no sangue que circula nas veias e trás o plasma da herança rural, das tradições ancestrais e outros vínculos da memória coletiva.

Jornalista, membro da Academia das Ciências

 

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