Uma estátua para o super-herói da Madeira

A discussão em torno da nova estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal não se esgota no volume nos calções.

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A estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal AFP/GREGÓRIO CUNHA
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O jogador e a estátua AFP/GREGÓRIO CUNHA
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O jogador com o filho ao lado da estátua e o folclore da Madeira REUTERS/DUARTE SÁ
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O jogador com o filho ao lado da estátua AFP/GREGÓRIO CUNHA
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O jogador com o filho ao lado da estátua AFP/GREGÓRIO CUNHA
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A estátua de Cristiano Ronaldo com as legendas também em inglês AFP/GREGÓRIO CUNHA
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O jogador depois de receber a Medalha de Mérito ao lado de Alberto João Jardim REUTERS/DUARTE SÁ
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O jogador e a família REUTERS/Duarte Sá

Ambos os tópicos têm silenciado outras possíveis questões que esta homenagem poderia suscitar. Por exemplo, saber se faz sentido erguer estátuas a um jovem de 29 anos, mesmo que seja o melhor jogador de futebol do mundo. Ou se era inevitável a opção por uma estátua francamente realista, ainda que sobredimensionada - e referimo-nos agora à altura: 2,40m, descontado o pedestal. Ou o que ganha a Madeira (e o governo regional) com esta cerimónia e este monumento? Ou ainda tentar perceber o que comove o jogador neste modesto tributo doméstico à sua carreira galática?

O público ouviu um sociólogo, um historiador, um artista plástico e um crítico de arte, e em duas coisas estão todos mais ou menos de acordo:  nenhum se mostra particularmente chocado por se erguer uma estátua a um jogador de futebol, mesmo estando ainda no activo, e todos eles consideram previsível e compreensível que, nestas circunstâncias, promotores e artista tenham optado por uma figuração naturalista.

Tendo em conta o universo de fãs de Ronaldo e o potencial turístico do monumento, o crítico de arte Óscar Faria observa: “Se fizessem um cubo e dissessem que era o Ronaldo, talvez não funcionasse lá muito bem”. E o artista plástico e músico João Paulo Feliciano acha que “o problema com a estátua do Ronaldo é muito mais dos observadores do que da coisa em si”, argumentando que “é a partir do nosso ponto de vista, supostamente mais intelectualizado”, que “tendemos a pensá-la como um fenómeno com uma sofisticação que ela não tem que ter”. O erro de perspectiva pode estar, segundo este artista, em se querer estabelecer “uma ligação directa entre esta estátua e a arte como nós a entendemos quando pensamos num museu como Serralves ou a Gulbenkian”. Ora, conclui, o monumento madeirense terá mais a ver com o universo da “colecção de cromos”.

Amaciar as rugas
O próprio autor da estátua explicou ao PÚBLICO que quando o convidaram ficou a perceber, “logo nas primeiras impressões” trocadas, que o que se queria era “uma escultura figurativa”, que os fãs pudessem reconhecer e fotografar. E os seus muitos trabalhos espalhados pelo Funchal - e que incluem, para citar apenas alguns, a estátua da Autonomia, hoje na praça homónima, ou os monumentos que criou para honrar o Trabalhador, o Turista ou o Combatente - deixam perceber que a sua especialidade passa pela figuração realista da anatomia humana.

Quanto às reservas que a obra tem merecido, Veloza diz que já está “habituado às críticas positivas e negativas”, acrescenta que recebeu elogios vindos da família do retratado e diz que a única sugestão que o irmão de Ronaldo lhe fez, e que cumpriu, foi a de “amaciar um pouco as rugas de expressão” que usara para tentar tornar o rosto mais reconhecível”. Mas ele próprio reconhece que tinha “exagerado” e que a estátua ficou a ganhar com a alteração.

Óscar Faria acha que, “enquanto arte contemporânea”, este Ronaldo de bronze “não tem nenhum interesse”, mas que também “não faz grande sentido” avaliá-lo nesses termos. “Não está tecnicamente mal feita e cumpre o seu desígnio”, diz, acrescentando que o que a diferencia e salva da trivialidade é mesmo “a tal protuberância”, já que, observa, “é um detalhe anatómico a que não costuma dar-se muito destaque em obras deste tipo”. Virtude ou defeito, o certo é que a aparente erecção da estátua está a concentrar as atenções da imprensa europeia e a tornar-se viral nas redes sociais. O jornal desportivo Primera Hora comenta que “mesmo em fotografias, é impossível olhar para outro lugar que não seja o seu traço avultado na área frontal”.

Discussões artísticas e peculiaridades anatómicas à parte, o sociólogo Nuno Domingos, um investigador que tem dado particular atenção ao fenómeno do futebol, acha que “todo este processo em torno da estátua de Cristiano Ronaldo deve ser visto à luz da geopolítica madeirense e da “relação da Madeira com o continente”. Nota que a homenagem acontece “no contexto da sucessão do líder do PSD da Madeira”, Alberto João Jardim, e pensa que ela deve ser lida como um gesto de “afirmação regional”, uma forma de lembrar que o super-herói galáctico, aquele que “é talvez o português mais conhecido em todo mundo”, é também “um filho da terra”.

Domingos salienta ainda a importância de Ronaldo para o turismo, vendo nesta estátua mais um atractivo a potenciar essa dimensão, a somar-se ao museu que já hoje recorda no Funchal os triunfos da carreira do actual jogador do Real Madrid.

Um herói do povo
Numa época em que a “força mediática e o impacto comercial da cultura popular são enormes”, um tempo em que se publicam “biografias de um jogador de futebol ou de uma jovem estrela pop”, as vantagens de pôr a imagem de Ronaldo ao serviço da “afirmação do poder regional” são evidentes, observa o sociólogo. Mas Domingos lembra que o jogador também tem “servido a diplomacia económica portuguesa”, como recentemente sucedeu com a oferta de camisolas com o seu nome numa visita oficial à China.

Já do ponto de vista do jogador, Domingos admite que o entusiasmo com que Ronaldo saudou desde o início este projecto possa também ter a ver com “o significado que tem para ele, que veio de uma família pobre da Madeira, estar agora ali com a mãe e os irmãos, a ser homenageado pelas principais figuras da terra”.

João Paulo Feliciano parece sugerir algo semelhante quando identifica nesta homenagem “uma tensão entre a realidade da Madeira onde nasceu Cristiano Ronaldo, o ponto de partida, e aquilo que hoje representa Cristiano Ronaldo, um jogador reconhecido em todo o mundo, que é o ponto de chegada”.

Já sobre a escultura em si mesma, acha que “a posição escolhida, o ar musculado e as roupas muito agarradas ao corpo” contribuem para sugerir “a ideia de um super-herói”.

O historiador Manuel Loff não se afasta muito desta perspectiva, mas acrescenta que Ronaldo, “como Joaquim Agostinho, Eusébio ou Amália, tem esse percurso que é o único que se admite aos heróis do povo: vir de baixo, trabalhar incansavelmente e triunfar, mas em nome de todos, já que triunfar em seu próprio proveito só se permite aos ricos”. Foi nesta imagem, diz, que Alberto João Jardim apostou no discurso que fez quando a estátua foi inaugurada. “Exaltou o madeirense emigrante, lutador, resiliente, que não se deixa vir abaixo, mas os políticos falam sempre de si próprios quando falam de outros, e isto é o que Jardim quer que se acredite que foi a sua gestão da autonomia madeirense”.

Se Ronaldo encarna o típico herói popular luso, Loff chama a atenção para o facto de o jogador não ter “um bigode ou uma patilha que o identifiquem como português” e de a sua a imagem “estar completamente de acordo com a cultura de massas actual”. Mas também sublinha que esta conformidade não põe em causa que Ronaldo continue a ser e a sentir-se português e madeirense. “Não é luso-espanhol, não fundiu a sua identidade numa outra”.

Loff prevê ainda um auspicioso futuro ao “mito Cristiano Ronaldo”, que será favorecido pelo facto de a sua carreira coincidir com “a pior regressão” das últimas décadas. “A memória dos seus triunfos”, diz, “vai coincidir na memória colectiva com a dureza desses anos em que ele esteve lá, a mostrar que só não somos bons porque não nos deixam e a exorcizar o sentimento de fracasso dos portugueses”.

E para lá das construções simbólicas, Ronaldo merece uma estátua? Nuno Domingos acha que sim. “Podemos achar imoral o que ele ganha, mas ganha-o num mercado no qual se tem de dar provas inequívocas, onde não se chega por cunhas, ou por se ser filho de alguém, ou por se ter andado numa universidade com propinas muito caras”.

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