Quantos escravos trabalham para si, consumidor?
Somos responsáveis por não se ter acabado com o trabalho escravo? Dois Nobel da Paz, Muhammad Yunus e Kailash Satyarthi, e vários peritos internacionais respondem-nos.
Quem é que produziu o sabão com que lava a cara, transportou os grãos de café que está a beber esta manhã, fez a camisola que veste, montou as peças do seu telemóvel, do seu computador? Como é que podemos ter a certeza de que não compramos produtos feitos por escravos?
É um dos temas mais quentes em matéria de trabalho. E, por isso, o painel sobre “as cadeias de fornecedores e os custos das pechinchas”, onde várias destas questões se discutiram, foi dos mais interessantes na conferência Trust Women, organizada pela Fundação Thomson Reuters, em Londres, em Novembro.
Na conferência, entre dois Nobel da Paz — Muhammad Yunus, o pai do microcrédito, e Kailash Satyarthi, o indiano que tirou milhares de crianças da escravatura —, dezenas de peritos estiveram a debater formas de acabar com a escravatura. Objectivo: fazer o diagnóstico mas sobretudo apontar soluções. Tarefa mais difícil, concordaram muitos, é garantir que as cadeias de fornecedores não tenham trabalho escravo. É isso que mais dores de cabeça tem dado a várias empresas multinacionais como a Apple, que fez uma limpeza do trabalho escravo na sua cadeia de fornecedores e já devolveu quase 20 milhões de dólares aos trabalhadores.
Os lucros do trabalho forçado estão estimados em 150 mil milhões de dólares anuais pela Organização Mundial do Trabalho. Mas Kailash Satyarthi é, porém, um optimista quanto à possibilidade de erradicar a escravatura, como confessou à Revista 2, numa curta conversa. “Quando comecei a trabalhar, há 34 anos, o trabalho infantil e a escravatura infantil não eram temas — eram problemas graves a que ninguém ligava. Era muito difícil demonstrar que muitas crianças que trabalhavam nos campos, nas minas, em casas não eram apenas crianças pobres, mas sim vítimas de escravatura e do trabalho forçado. Hoje, nenhum governo nem nenhuma empresa o pode ignorar — as organizações da sociedade civil tornaram-se muito fortes em todo o mundo, há mais dinheiro investido para acabar com o trabalho e a escravatura infantis, há novas leis a serem criadas e estas coisas são positivas.”
O Nobel da Paz, que pôs toda a gente a gritar “fora a escravatura” no encerramento da conferência, acredita: “Vou conseguir ver o fim da escravatura moderna durante a minha vida!”
Mas se este é um problema reconhecido, se os números estão estimados e as zonas geográficas e áreas de maiores risco foram identificadas, o que é que nos impede de acabar com a escravatura?, perguntamos a vários peritos. Kailash Satyarthi é directo: não se acaba com a escravatura “porque não temos a compaixão pelas outras crianças — temos compaixão pelas nossas crianças biológicas, mas não pelas crianças que não conhecemos”, responde. “Como globalizar a compaixão?”, questiona retoricamente. “Globalizamos marcas, empresas, tecnologia. Este é o período em que temos de globalizar a compaixão humana, e ela começa com a ligação a outras crianças.”
Muhammad Yunus tinha-nos dito, em entrevista, que o motivo se deve a uma “indiferença” global: “As pessoas estão tão focadas em fazer dinheiro, na perseguição do lucro, em ambições pessoais, em quanto dinheiro se ganha... A escravatura é também um produto disso, entre outras coisas.”
Porém, como foi sublinhado na conferência, há uma parte da resposta que estará nos consumidores. Debateu-se: devemos ou não boicotar as marcas que recorrem a trabalho escravo ou que estão sob suspeita?
Em 2009, Livia Firth, directora criativa da Eco-Age, visitou uma fábrica no Bangladesh que produzia para uma marca de moda conhecida, e ficou chocada com o que viu: mulheres que produziam 100 peças por hora, estavam amarradas à fábrica de onde não podiam sair sem controlo, e só lhes era permitido ir à casa de banho duas vezes por dia. “Percebi que não podíamos resolver nada até lidarmos com a fast-fashion [analogia a fast-food na moda].” Há grandes marcas que produzem 10 mil modelos por ano, lembrou: “Quem precisa de 10 mil modelos?!!!”, questionou. “Nós também fazemos parte do jogo. Quando as pessoas me perguntam o que devem fazer, eu normalmente digo: comprometam-se a usar cada peça de roupa que têm pelo menos 30 vezes” — e não apenas duas, como muita gente faz, disse. Durante a sua intervenção, Livia Firth insistiu nesse ponto. “Nós, os compradores ocidentais, somos responsáveis pelas condições de trabalho das mulheres do outro lado do mundo, que se tornaram uma espécie de fantasmas.”
Como comprador, mas para uma empresa de cosmética, a Lush, Simon Constantine argumenta justamente à Revista 2 que “faz diferença saber onde pomos o nosso dinheiro”. A Lush deixou de comprar mica (mineral usado na cosmética) porque soube, há cerca de 18 meses, que estavam a ser usados trabalhadores escravos na sua extracção. Analisa: “Nunca ninguém vai dizer que a escravatura é boa porque desce os preços, isso é horrível! Mas a verdade é que há pessoas a fazer dinheiro com a escravatura e a única maneira de os fazer parar é não gastar dinheiro com eles. Pelo menos, não estamos a contribuir para o seu sucesso.” Porque não tinha dinheiro para fazer uma investigação, a Lush decidiu então substituir esse componente que tinha começado a usar na sua linha de cosméticos com cor há pouco tempo. Gastou 164 mil euros na substituição, aos quais acrescenta o tempo de desenvolvimento dos produtos — ainda estão a despachar os stocks antigos, mas esperam ter-se livrado totalmente da sua utilização no final deste ano.
Mas nem todos têm poder económico para fazer o que a Lush fez. Ou vontade. Por outro lado, para o consumidor individual, a escravatura “é muitas vezes algo remoto”, lembra Nick Grono, que foi presidente da Walk Free Foundation, a organização que publicou o primeiro Índice Global da Escravatura, em 2013. Ele hoje é presidente da Freedom Fund, uma iniciativa filantrópica que tem como objectivo reunir financiamento e aplicá-lo a objectivos estratégicos para acabar com a escravatura moderna — querem reunir um fundo de 100 milhões de dólares para aplicar nos países e sectores mais carenciados. Em conversa com a Revista 2, lembra que a maior parte das vezes não sabemos de onde vêm os camarões que estamos a comer — talvez venham da Tailândia, mas não nos ocorre que pode existir trabalho forçado na produção desses camarões nessa zona do mundo, como revelou o Guardian numa investigação deste ano. Grono defende que “não podemos colocar a responsabilidade toda nos consumidores”. O que podemos é “perguntar às empresas, de forma contínua, se têm políticas para o trabalho forçado” na cadeia de fornecedores de camarões, por exemplo. Aí as empresas vão começar a prestar atenção ao problema, porque “ninguém quer ser acusado de ter escravatura”.
Jean Baderschneider, antiga vice-presidente para as aquisições globais da petrolífera ExxonMobil, confessa-nos que é “muito cuidadosa com a forma como se fazem os boicotes”. A actual membro do projecto de combate ao tráfico humano Polaris acredita que é possível erradicar a escravatura. Mas há um problema a resolver: o que acontece a seguir ao boicote, a desmantelar-se uma situação de escravatura? Que vai ser dos trabalhadores e da economia? “Os governos precisam de saber o que acontece. Se as crianças estão a fazer tapetes, então o que acontece depois? Elas precisam de ir à escola. E os tapetes precisam de ser feitos para garantir que a economia continua a funcionar.”
Exemplo do que acontece a quem é resgatado é a história de Evelyn Chumbow, que anda pelo mundo a contar como foi ser escrava, em conferências e não só. Como ela, muitos sobreviventes ficam em situação laboral de desvantagem. Perante as centenas de pessoas que estavam a assistir à Trust Women, Evelyn Chumbow, 29 anos, apelou, do palco: “Preciso de um emprego.” Ela foi levada aos nove anos dos Camarões para os Estados Unidos por uma mulher que a aprisionou em sua casa até aos 17 anos, conta-nos mais tarde. Explica-nos a sua posição, com vigor e rapidez nas palavras, referindo que discorda da opinião de Yunus, que nos instiga a criar o nosso próprio emprego em vez de o procurarmos (ver a entrevista no PÚBLICO). “Eu e outras sobreviventes encontrámo-nos com tanta gente, fomos a tantas conferências, falámos sobre o mesmo tema vezes sem conta. Viemos aqui falar, e depois? Dizem-nos para criar o nosso próprio emprego. Mas vivemos numa sociedade em que é suposto ir à escola e procurar um emprego. Para criar o nosso próprio emprego, alguém tem de nos ensinar: se estivemos em situação de escravatura, não fomos à escola, como vamos fazer? Os sobreviventes são a chave para falar deste problema, mas por favor, dêem-nos emprego.”
A história de Jean Baderschneider com a escravatura começou no lounge do aeroporto de Angola há cerca de sete anos, onde tinha estado a trabalhar. Viu uma rapariga “linda”, de uns “12 ou 13 anos” com um ar assustado, debaixo do braço de um homem mais velho. “Estava a falar com uns colegas e a pensar: ‘Há qualquer coisa de muito errado aqui.’ Não sabia nada sobre tráfico de seres humanos. Dirigi-me à rapariga, mas quando me aproximei ele puxou-a. Depois eles embarcaram. E eu falei à tripulação, que me disse que era algo que estava sempre a acontecer.”
Tentou contratar um investigador privado para traçar o rasto à rapariga, foi à Unicef, às Nações Unidas, até descobrir o projecto Polaris, com quem ficou a trabalhar — nunca a encontrou. Hoje, está reformada da Exxon, mas dedica-se a esta causa. Da sua experiência como alguém que geria milhões de dólares na área das aquisições, diz, com uma voz segura e muito determinada: “As empresas têm de estabelecer prioridades e o que tem de ser claro é a forma como fazem as suas aquisições. Precisamos de empresas que limpem a sua cadeia de fornecedores e tragam o seu poder para esse combate. Temos de seguir o dinheiro, e isso passa por exigir que incluam nas suas cláusulas de aquisições que as empresas só podem fazer propostas se garantirem que a cadeia de fornecedores está limpa, e monitorizem esses fornecedores, com visitas-surpresa.”
Empresas como a Exxon têm milhares de fornecedores, não é possível avaliar todos. Este foi, de resto, um dos “obstáculos” referidos por alguns peritos. As multinacionais podem ter a vontade e determinação para “limpar” o trabalho escravo da sua cadeia, mas depois como levam isso à prática? “Por exemplo, o que se passa com a gravilha em Angola? A maioria é produzida por crianças. Começámos a investigar. Como é que mudo de fornecedor? Tudo começa a ficar cada vez mais complicado. Por isso, é necessário ter mapas que digam: não comprar gravilha em Angola, têxteis na Índia, electrónica na China porque corremos o risco de ter trabalho escravo na nossa cadeia”, defende Jean Baderschneider. O problema seguinte é como convencer as empresas a investir nisso, especialmente as mais pequenas. Só com apoio dos governos, através de regulamentações, e de um compromisso moral e económico, acredita: “É preciso perceber que a produção é muito mais barata quando não é feita com escravos, a produtividade sobe e muda-se a forma de trabalhar. Não temos muito incentivos e precisamos de os criar.”
Jean pegou numa imagem durante a conferência: a ideia de que quando se fala de corrupção a legislação criada é forte, mas quando se fala de escravatura perde-se “a coragem para tomar atitudes mais duras”. À Revista 2 concretiza: “Há 20 anos, acontecia o mesmo com o ambiente, passámos legislação dura e as empresas comprometeram-se a cumprir. Quando se trata de direitos humanos, é qualquer coisa em que parece que não temos vontade de colocar a mesma robustez. Isso choca-me. O crime pior não é colocar alguém em situação de escravatura?”
Nick Grono, pragmático, lembra que a escravatura é um negócio muito rentável, por isso não se muda apenas porque se diz aos criminosos e exploradores “para fazerem o bem”: é preciso mudar os incentivos, aumentar as penalizações e os riscos de se ser apanhado.
Um dos exemplos de boas práticas é o Reino Unido, que criou uma lei antiescravatura na qual se exige às empresas que digam o que estão a fazer para prevenir a escravatura na sua cadeia de fornecedores. O outro é o Brasil, referenciado no índice como líder no combate à escravatura. Renato Bignami, inspector do trabalho, coordenador do programa estatal para a erradicação das condições análogas à escravatura, conta-nos que o país reconheceu a existência do problema em 1995 e organizou-se para o combater. Desde então, foram resgatados 50 mil trabalhadores em situações análogas à escravatura (o termo legal usado pelo Brasil) e, mais ou menos a partir de 2010, “pela primeira vez, a quantidade de trabalhadores resgatados no meio urbano foi superior à de trabalhadores resgatados no meio rural”.
Em 2003, o Brasil criou uma regra que obriga a publicação da lista suja das empresas que usaram trabalho escravo. A lista é actualizada a cada seis meses, as empresas ficam dois anos nessa lista e são monitorizadas pela inspecção do trabalho, descreve — tem neste momento cerca de 500 empresas. Além disso, é cortado o financiamento público a essas empresas. Até agora, a lista suja tem uma presença maior do agro-negócio “porque as políticas públicas estavam orientadas para o meio rural — e a partir de 2007 mostrámos que as situações ocorriam no meio urbano”. No meio urbano, são empresas de vestuário e de construção civil que mais são apanhadas nessa lista.
Autor de um relatório que perguntou a 15 grandes multinacionais o que as preocupa em relação à sua cadeia de fornecedores, Chris Burkett, da consultora McKenzie, lembra que “qualquer multinacional está em risco de ter trabalho escravo na sua cadeia”: porque as redes de fornecedores estão cada vez mais a estender-se para os países em vias de desenvolvimento e há cada vez mais camadas de empreiteiros e subempreiteiros e fornecedores, o que torna muito difícil perceber o que se passa. Acredita que há uma nova tendência a desenhar-se: leis sobre a transparência na cadeia de fornecedores que vão exigir a empresas que digam quais os esforços que estão a fazer para erradicar o trabalho forçado. “É uma nova frente nas regras corporativas que se foca mais em direitos humanos, sociais e ambientais”, defende.
Muito depende, de facto, do que vierem a fazer as grandes multinacionais. Como exemplifica Renato Bignami, as 500 empresas mais rentáveis do mundo são responsáveis por 70% do comércio global, mas empregam directamente menos de 1% da mão-de-obra mundial (dados da Organização Internacional do Comércio). Isto é um indicador do potencial que existe para a escravatura global, defende. “Necessariamente, essas empresas investem muito em marketing, na própria imagem, mas investem muito pouco ou nada na cadeia produtiva. Ou seja, exercem uma pressão enorme na cadeia produtiva para reduzir custos, aumentar a produtividade, o que representa necessariamente pressão sobre o trabalhador. Hoje, é muito mais comum encontrar trabalho escravo em pequenas empresas do que em grandes corporações. No entanto, as grandes corporações dependem não do trabalho desses 1% de trabalhadores que empregam directamente mas sim do trabalho gerado em toda a cadeia de fornecedores.” Quantas mãos de escravos estão, afinal, nessa cadeia gigante de fornecedores?