Choque de realidade
O caso BES consegue produzir resultados absolutamente inesperados.
A surpreendente entrevista ao deputado Carlos Abreu Amorim que hoje publicamos mostra como, às vezes, um choque de realidade pode mexer em convicções que se julgavam inabaláveis. Ele, um leitor e admirador de Friedman e de Hayek, um seguidor atento da escola de Chicago, autor de um livro intitulado “É Difícil Ser Um Liberal em Portugal”, confessa, “comovido”: “Já não sou um liberal.” Bastou-lhe um mês de presença assídua na comissão parlamentar de inquérito ao BES, na qual coordena a equipa de deputados do PSD. Figura polémica, para muitos “irritante” e “truculento”, este professor de Direito começou a ser conhecido nos meios políticos pelos seus comentários em jornais e televisões em que, durante anos, zurziu o Governo Sócrates, enquanto pregava as virtudes de um ultraliberalismo tão cego quanto o destino das farpas que disparava em todos as direcções onde julgava descortinar um opositor. Andou pelos caminhos da Nova Democracia, o defunto partido criado por Manuel Monteiro, mas a sua ascensão política só se dá verdadeiramente com o convite de Passos Coelho para encabeçar, como independente, a lista social-democrata pelo círculo de Viana do Castelo.
Hoje, o cargo de figura de proa da bancada "laranja" na comissão de inquérito ao BES é uma distinção assinalável para quem chegou há pouco. É à luz deste currículo que as suas palavras são tão inesperadas e tão reveladoras. “Neste momento, em Portugal, mais do que rótulos ideológicos, precisamos de aprender com a experiência. O Estado tem de ter força.” É de elogiar o desassombro e até a honestidade intelectual do deputado, mas há também aqui uma desilusão algo serôdia. Hayek e Friedman foram os inspiradores de Reagan e Thatcher nos anos 80 e os Chicago boys uma espécie de modernização das teses libertárias de Friedman sobre o mercado. A primeira-ministra britânica aplicou muito da sua receita na Grã-Bretanha e a influência desta escola na teoria económica ainda hoje tem seguidores. Até Clinton, o Presidente norte-americano mais incensado pela esquerda, se deixou seduzir pela desregulamentação do mercado, acabando por assinar o Graham-Leach-Bliley Act, que praticamente acabou com a separação entre a banca comercial e a de investimento, abrindo portas às operações de alto risco num sistema financeiro sem controlo. Estas teses floriram durante anos, alimentadas pelo estertor da ex-URSS e pela apressada declaração sobre o fim da História que celebrizou Fukuyama.
Enterrado o comunismo, os amanhãs cantavam agora a ode ao capitalismo, como se, subitamente, fosse possível apagar as contradições políticas, sociais e económicas das sociedades contemporâneas. A crise financeira de 2008 acabou com as ilusões e são cada vez mais as vozes de dentro do sistema a denunciar as políticas ultraliberais. Veja-se a sra. Lagarde ou Philippe Legrain, ex-conselheiro de Durão Barroso na Comissão Europeia. Abreu Amorim descobriu agora. Mais vale tarde…
Texto corrigido às 12h43 Carlos Abreu Amorim não é militante do PSD, mantendo-se como independente.