Um quarto de século depois, a indústria têxtil volta a mostrar a sua fibra
Abertura do mercado europeu à China e crise de 2008 provocaram uma hecatombe, mas o têxtil e o vestuário nacionais deram a volta ao texto e emergem como uma indústria avançada e competitiva.
Entre o passado e o presente, sobra pouco de comum. Já não há a ancestral figura do encarregado ou do patrão – no comando da empresa está Alexandra Araújo, uma jovem de 35 anos licenciada em gestão, e Manuel Barros, um engenheiro químico; já não há o barulho ensurdecedor dos teares – apenas um ruído de fundo que se perde na imensidão do edifício; já não há apenas encomendas de clientes estrangeiros que ditavam as cores, os tamanhos e os tecidos – hoje a LMA oferece ao cliente soluções desenvolvidas e testadas nos seus laboratórios.
Entre esse tempo da velha fiação e o presente da LMA passaram-se 25 anos em que o sector têxtil sofreu um abalo de proporções sísmicas. Umas duas mil empresas desapareceram do mapa do sector que se concentra nos distritos de Braga (51% das empresas) e do Porto, deixando a paisagem do Vale do Ave marcada por enormes edifícios-fantasma que recordam os anos 80, o tempo em que a têxtil era a mais importante indústria do país. Mais de cem mil operários perderam os postos de trabalho, reduzindo o emprego no sector de 240 mil pessoas para cerca de 123 mil no ano passado. O volume de negócios passou de 8,6 mil milhões de euros em 2001 para 6,2 mil milhões em 2013. E o peso da produção de fios, tecidos e vestuário no conjunto das exportações nacionais passou de 30% nos primeiros anos da integração europeia para pouco mais de 10%.
Depois de um quarto de século de devastação, porém, há sinais de que algo pode estar a mudar. “Pela primeira vez em muitos anos, o sector deixou de destruir emprego e pode ter até criado postos de trabalho”, diz Paulo Vaz, o director-geral da Associação dos Têxteis e Vestuário de Portugal (ATP). Pelo terceiro ano consecutivo, as exportações aumentaram – este ano, até ao terceiro trimestre, as vendas ao exterior cresceram 9,2%, um recorde em muitos anos. Estará a fileira do têxtil e do vestuário a dar a volta à sua crise profunda? Paulo Vaz acredita que sim. Braz Costa, que dirige o influente Citeve, um centro de investigação do sector, também. Mais cauteloso, Crispim Ferreira, director-geral da emblemática Lameirinho, uma empresa especializada em têxteis-lar, reclama o estatuto de quem trabalha há 37 anos na indústria para pedir um pouco de calma e esperar por sinais mais certeiros, antes de entrar em euforia. O Plano Estratégico do sector para o horizonte de 2020 dá-lhe razão: no cenário mais optimista, espera-se que nos próximos anos desapareçam 800 empresas e que se extingam mais de 20 mil postos de trabalho, embora se aponte para um aumento das exportações para cinco mil milhões de euros.
Com maior ou menos optimismo, há pelo menos razões para acreditar que o pior já passou. Ou, por outras palavras, que a indústria já encaixou os custos do euro, que pôs termo às políticas de desvalorização cambial adoptadas sempre que era preciso empurrar as exportações e, mais importante, já se ajustou ao terrível impacto da abertura dos mercados ocidentais aos produtos asiáticos, em 2005. A mudança, sabia-se, teria consequências duras na indústria europeia. A Itália perdeu metade do emprego no sector e metade da sua quota no mercado internacional (hoje, nos 5%). E em Portugal, as previsões de um estudo da Kurt Salmon Associates, em 2000, que tinham como pior cenário a destruição de 106 mil postos de trabalho e de 826 empresas, foram ultrapassadas por uma realidade ainda mais crua. Mas sobreviveram as espécies mais adaptadas, num processo de selecção natural. “O sector está praticamente expurgado das empresas ineficientes e desadequadas”, sublinha Paulo Vaz.
Os exemplos de companhias de vanguarda abundam: a Paulo Oliveira SA desenvolveu um fato que se pode lavar no chuveiro para executivos que andam de hotel em hotel, a Domingos Almeida vende lençóis que regulam a sua temperatura em contacto com o corpo. A Dielmar, a Salsa, a Impetus, a Onara ou as marcas de desporto Lacatoni e Berg criaram produtos competitivos à escala mundial. A LMA desenvolve tecidos para as camisas dos pilotos da Red Bull e a Lameirinho é repetidamente vencedora dos prémios de melhor fornecedor entregues pelos seus clientes.
A devastação que veio da Ásia
Para se perceber o que aconteceu depois de 1990 e o que está a acontecer é preciso recuar no tempo. A têxtil no Vale do Ave vem desde a Idade Média com a produção de linho e acelerou na revolução industrial, quando várias empresas se instalaram nas margens do rio. No século passado, as grandes empresas prosperaram à custa de acumulação de riqueza familiar no seio de dinastias ligadas à indústria local ou por influência de banqueiros como Arthur Cupertino de Miranda (o fundador do poderoso Banco Português do Atlântico era de Famalicão), que nos anos 50 defendia investimentos em massa na modernização de uma indústria “cansada pelo labor incessante, nas 24 horas de cada dia desta última meia dúzia de anos".
A adesão de Portugal à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), em 1960, abriu portas às exportações para os países nórdicos ou a Inglaterra e criou o rastilho que levou à explosão do sector. Em 1973 a ITV já valia 10.6% das exportações. Nos anos de instabilidade do pós-25 de Abril a têxtil foi uma das principais fontes de divisas para o país. Em 1986, na véspera da adesão de Portugal à CEE, as exportações do sector ascendiam a 30% do total.
Mas se a indústria era grande, estava longe de ser competitiva. “Produzíamos bens de baixa qualidade e de baixo preço. As empresas eram mal organizadas e tinham equipamentos velhos e obsoletos”, recorda Braz Costa. O seu sucesso resultara da transferência de capitais e maquinaria do Norte da Europa, onde a modernização da economia tinha remetido a têxtil para o estatuto de arcaísmo. “Nesse tempo éramos a ‘China’ da Europa do Norte”, precisa Braz Costa. Na Europa Ocidental, sectores como a fiação de algodão ou o vestuário básico continuavam apenas a resistir no paraíso dos salários baixos que subsistia em Portugal. No começo dos anos 80 até a Espanha tinha já encerrado o seu capítulo têxtil – renasceria depois à custa do sucesso da Inditex, dona de marcas como a Zara ou a Massimo Dutti, que é hoje o maior grupo mundial do sector. Em Portugal, porém, era impossível desistir de uma área da economia que valia um terço do comércio externo do país.
Uma oportunidade
Com a chegada do primeiro ciclo dos fundos europeus para o investimento, abriu-se uma oportunidade. “A palavra de ordem, a nossa primeira missão foi melhorar a qualidade”, diz Braz Costa. O Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP), que teve no ministro da Economia Mira Amaral o principal mentor, dirigiu boa parte dos seus recursos para a indústria. A “qualidade” entrou em todos os discursos e a compra de máquinas em todas as estratégias. “Os investimentos do PEDIP foram fundamentais. Em 2000 tínhamos o melhor parque de máquinas do mundo. Tínhamos tudo o que havia de bom”, recorda Braz Costa. Nessa época, entre 1992 e 2002 “a Lameirinho investiu 100 milhões de euros. Comprámos máquinas, criámos uma fiação moderna, instalamos equipamentos de co-geração para baixar os nossos custos energéticos”, recorda Crispim Ferreira.
Nada disso, porém, foi capaz de evitar a primeira grande vaga de falências. Em 1994 o PÚBLICO fez uma grande reportagem no sector à qual deu o título Vale do Ave: a crise chegou mais cedo. Não fora preciso esperar pela anunciada liberalização do comércio mundial, que ficaria confirmada numa cimeira em Marraquexe, em 1996, para que o sector começasse a depurar. Alexandra Araújo, que pertence à quarta geração de uma família de industriais, lembra o tempo em que os seus pais diziam: “Isto tem de ser limpo”. Empresas instaladas em vãos de escada, onde grassava o trabalho infantil, sem capitais nem estratégia para entrar na corrida pelo PEDIP, não tinham lugar num país que queria ser moderno, onde os salários reais cresciam todos os anos. Foram ficando pelo caminho.
Enquanto algumas empresas morriam, outras, mais modernas e voltadas para o futuro, como a LMA, nasciam. Apesar das nuvens negras sobre o Ave, havia uma convicção generalizada de que a tecnologia e os fundos europeus bastavam para dar a volta à crise. Até porque no final dos anos 90, a têxtil viveu anos de glória. Entre 1998 e 2002 as exportações bateram recordes, aproximando-se dos cinco mil milhões de euros – mais 500 milhões do que este ano, se se cumprirem as melhores previsões. Em 1999 a Lameirinho facturava 100 milhões de euros e era um império que empregava 1600 funcionários num perímetro industrial situado no coração de Pevidém, perto de Guimarães, equivalente a 20 campos de futebol. Vivia-se uma espécie de bonança que antecipou a tempestade.
Em estado de choque
Ainda antes de a Europa liberalizar por completo as importações da China, o que aconteceria em 2005, a queda abrupta de preços e redução dramática de encomendas deixa as empresas em estado de choque. “Aí por volta de 2004/2005 os clientes chegavam aqui e, de um momento para o outro, diziam: ‘Pagámos 2,65 euros por metro de malha para sublimação [estampagem] e agora queremos pagar metade, se não vamos comprar à China’”, recorda Alexandra Araújo. Em 2005, a LMA perde 40% da sua facturação. No espaço de um ano, entre 2005 e 2006, meio milhar de empresas entram em falência. Mais de dez mil pessoas perdem o emprego na sequência do encerramento ou de processos de reestruturação. A Lameirinho fecha a operação da ASA, uma empresa histórica do sector, e reduz os seus efectivos de 1600 para 600 trabalhadores.
Começara a longa travessia do deserto. A LMA, que dedicava a sua actividade à produção de “malhas funcionais” para desporto e outdoor vê partir para a China clientes como a Nike ou a Adidas. A primeira tentação foi baixar os preços para resistir o mais possível ao “rolo compressor chinês” que, como recorda Paulo Vaz, no prazo de uma década aumentou a sua quota no mercado mundial da têxtil de 10 para 33%. “Tivemos de ser muito mais eficientes para podemos baixar os preços”, diz Manuel Barros, director-geral da LMA. Nas cúpulas empresariais e associativas do sector, porém, sabia-se que esse esforço não bastava. Era preciso mudar tudo, ou quase. Na estratégia, na gestão, na relação com os clientes, na produção, na logística, na inovação. “Não podíamos fazer mais do mesmo”, diz Manuel Barros. “Tivemos de sobreviver. Depois de fazermos uma reestruturação em 2004, posicionámo-nos num segmento médio/alto, deixando para os asiáticos a parte mais baixa da cadeia”, explica Crispim Ferreira.
Entre 2005 e 2010 o sector acumulou indicadores negativos. Foram os anos de ajustamento. A LMA diversificou a sua oferta de produtos, começou a trabalhar para o calçado ou para a indústria automóvel. Apostaram na certificação, investiram em equipamentos, montaram laboratórios que analisam resistência das fibras, a solidez à luz, a reacção à humidade, a estabilidade dimensional ou o peeling (propensão para gerar borboto) das malhas. Tornaram-se capazes de produzir um tecido com três superfícies que engloba uma membrana que abre quando um ciclista transpira e fecha quando temperatura corporal baixa. A Lameirinho deixou de ser um mero executor de ordens externas e dedica-se a desenvolver, produzir e oferecer em embalagens gamas completas de lençóis ou toalhas de mesa cuja qualidade e sensação ao toque até os mais leigos conseguem perceber. “Nós, hoje, desenvolvemos o produto, apresentamos o fato à medida do cliente. A mudança principal, nos últimos dez anos, é que nós passámos a criar um conceito”, precisa Crispim Ferreira.
Os teares aceleram de novo
Passadas as primeiras ondas de choque, a têxtil começa a dar conta dos seus trunfos. “As empresas que resistiram têm hoje um nível de eficiência comparável ao que de melhor se faz no mundo. Souberam que tinham de fugir da maldição do preço e uma grande parte conseguiu”, nota Paulo Vaz. A criação da Selectiv Moda, em 2001, levou milhares de empresas a feiras de especialidade em todo o mundo, com o apoio dos fundos europeus – este ano o investimento na promoção ronda os nove milhões de euros. A tecnologia de produção tem sido actualizada. Dois centros de investigação com 150 especialistas conseguem gerar 20 patentes anuais, são capazes de inventar tecidos que se limpam por si próprios ou fibras para meias que registam a pressão corporal ou o número de passos de uma corrida. Nos seus laboratórios fazem-se testes com nanotecnologia ou materiais inteligentes. O facto de num raio de 50 quilómetros em torno de Famalicão haver um cluster industrial que integra toda a cadeia de produção é uma vantagem “que só Portugal e a Itália” têm, nota Paulo Vaz. Que além de permitir o controlo das diferentes etapas do ciclo, poupa as empresas a longas esperas por produtos importados e lhes confere um trunfo decisivo: a rapidez na entrega de encomendas.
“Temos um lead time [tempo de entrega] imbatível. Em duas ou três semanas a encomenda é colocada em qualquer parte da Europa”, diz Paulo Vaz. Numa era em que a velocidade na criação de gamas ou de reposição de stocks é um factor crucial, a indústria portuguesa consegue uma vantagem comparativa em relação aos competidores asiáticos. A Inditex espanhola percebeu a importância dessa rapidez de resposta e fez de Portugal uma das suas principais bases de produção.
Com empresas mais organizadas, com a intuição e a experiência dos empresários da velha guarda aliada ao saber técnico de gestores e engenheiros da nova geração, a indústria está de novo nas rotas internacionais da têxtil. Para lá da sua tradição, o país oferece ciência, inovação, certificação de produtos e uma indústria sustentável do ponto de vista ambiental. Muitos dos clientes que saíram do país há dez anos ou mais estão de volta. “Agora as grandes marcas estão a regressar. A Adidas, por exemplo, voltou em força. A nossa empresa era muito sossegada e tornou-se um corre-corre com estrangeiros que nos visitam e que nos querem conhecer”, comprova Alexandra Araújo. A China, outrora a palavra maldita que explicava as falências e o desemprego deixou de se pronunciar
“Mas não nos iludamos: no algodão e nas commodities, ou seja a têxtil que não tem nada de especial, eles foram para a China e já não voltam”, diz a directora-geral da LMA. Sérgio Marques, director-geral da Parfois, uma empresa do Porto com 500 lojas próprias e franchisadas em 50 mercados explica, numa entrevista ao Jornal Têxtil, as razões que o levam a fazer as suas colecções na China: “Em Portugal não temos capacidade de produção deste género de produto, porque os produtores nacionais seguiram um caminho, que estará correcto, de terem um produto mais caro, com materiais mais nobres. Mas não conseguimos fabricar aos preços que a Parfois pratica”.
Encontrado um novo rumo, a confiança de que, tal como aconteceu no calçado, é possível transformar num curto espaço de tempo uma indústria tradicional num sector de ponta regressou. “O made in Portugal vende”, diz Crispim Ferreira. Quem visitar a fábrica da Lameirinho fica a perceber porquê. A receita da sobrevivência da indústria exigiu ciência, planeamento, rigor e esforço e, principalmente, resistência. “Este é um sector muito sofrido”, concorda Paulo Vaz.