Uma tempestade perfeita atingiu o modelo económico de Putin
A Rússia viveu durante mais de uma década à base de receitas de petróleo e convencida de que tinha reservas cambiais suficientes para enfrentar qualquer crise. Numa semana, este modelo está a dar sinais de colapso.
A Rússia foi apanhada no meio de uma tempestade perfeita em que a queda dos preços do petróleo, a recessão económica e a aplicação de sanções pelos Estados Unidos e pela Europa contribuíram em simultâneo para que a já frágil confiança no rublo se afundasse de forma repentina.
Nos primeiros dois dias desta semana, a divisa russa caiu mais de 20% face o dólar, alargando para 50% as perdas registadas desde o início do ano. Esta quarta-feira, o dia até começou com uma recuperação, mas esta acabou por esfumar-se e o rublo voltou a registar perdas, desta vez mais ligeiras.
Governo e banco central russos têm tentado fazer aquilo que é normal no meio de uma crise cambial. Na terça-feira, o banco central subiu de forma drástica a sua taxa de juro de referência (de 10,5% para 17%), de forma a estimular a permanência dos capitais no país. Os resultados imediatos foram nulos, já que o rublo continuou em queda livre face ao dólar e euro. Esta quarta-feira, o Governo disse que ia utilizar as suas próprias reservas de divisas no valor de 7 mil milhões de dólares para comprar rublos nos mercados internacionais e travar a queda da divisa. O anúncio produziu resultados, mas apenas de forma temporária.
A generalidade dos analistas diz que será preciso muito mais para travar as forças que actualmente puxam a divisa russa para baixo. No decorrer deste ano, o banco central russo já utilizou, de acordo com os últimos dados conhecidos, 87 mil milhões de dólares das suas reserva de divisas estrangeiras para comprar rublos nos mercados. No total, antes destas vendas, o banco dispunha de reservas estimadas de 416 mil milhões de dólares.
Estes números colocam em perspectiva aquilo que o Governo pode fazer com os sete mil milhões que agora veio disponibilizar. E mostram que é da capacidade de acção do banco central que depende a forma como se irá desenrolar esta crise.
E neste capítulo, o banco central tem mostrado estar muito reticente quanto a gastar rapidamente todos os cartuchos de que dispõe. Em Setembro, a autoridade monetária surpreendeu os mercados ao libertar o rublo dos limites de variação a que estava sujeito, deixando a moeda flutuar livremente de acordo com a vontade do mercado. E agora, apesar de no último mês ter usado 10 mil milhões de dólares de reservas, parece sentir dificuldade em travar a queda da divisa. “Em contraste com a situação em 2008-2009, o mercado não tem a certeza de que o banco central sairá em defesa do rublo a um preço firme”, lamentava esta quarta-feira um analista de um banco russo, numa das muitas críticas que têm sido feitas à actuação do banco central.
Modelo Putin em causa
Mas, se as culpas parecem estar a ser dirigidas para quem conduz a política monetária, poucos duvidam que é o modelo económico seguido por Vladimir Putin desde que assumiu o poder que está verdadeiramente a ser colocado em causa com esta crise. Depois da economia russa sair da crise financeira de 1998, a recuperação foi feita à base das receitas do petróleo e, com o passar dos anos, a dependência face a esse sector acentuou-se, uma vez que a Rússia não foi capaz de desenvolver alternativas importantes noutros sectores industriais.
Ao mesmo tempo, para evitar a ocorrência de outras crises financeiras graves, Putin garantiu que o banco central acumulava uma das maiores reservas de divisas e ouro do Mundo. A estratégia resultou durante muitos anos. O petróleo manteve-se a preços elevados trazendo lucros significativos para a economia russa e as reservas acumuladas foram suficientes para que, em 2008, durante a crise financeira, o país escapasse a dificuldades sérias na sua balança de pagamentos.
Desta vez, tudo o que que poderia acontecer de mau à economia russa aconteceu. A queda do barril de petróleo para valores abaixo dos 60 dólares combinada com o impacto negativo das sanções internacionais numa economia já a caminho da recessão fazem com que a rede de segurança acumulada pelo banco central possa não ser suficiente para evitar uma crise grave.
E a população russa já está a sentir na pele os problemas. Nas lojas, os preços estão a subir a ritmo acelerado, fazendo lembrar o tempo da inflação acima dos 100% que se registou em 1998. A queda de mais de 50% do rublo face ao dólar já levou várias empresas estrangeiras, como a Apple, a McDonalds ou a Samsung a subir durante o último mês os preços dos seus produtos em rublos. De acordo com a Bloomberg, um iPhone 6 passou de 31.990 rublos em Novembro para 39.990 rublos agora, um acréscimo de 25%. O Big Mac subiu de 92 para 94 rublos e o Galaxy Note 4 ficou 14% mais caro. A expectativa é que estas sejam apenas as primeiras actualizações num cenário generalizado de escalada dos preços e em que muitas empresas, especialmente do ramo automóvel, já optaram mesmo pela suspensão das vendas, enquanto não perceberem ao certo quais os preços que devem praticar.
Não se pense, contudo, que os impactos negativos desta crise apenas serão sentidos pela população russa. Tal como aconteceu em 1998, o Mundo tem razões para temer a existência de efeitos de contágio noutros pontos do Globo.
Os primeiros a sentirem o impacto são os outros mercados emergentes. A crise russa é mais um acontecimento que se vem juntar ao prejuízo sofrido por alguns países com a queda do preço do petróleo e com a retirada das políticas expansionistas por parte da Reserva Federal. Esta quarta-feira, a autoridade monetária norte-americana deixou de dizer que as taxas de juro ficariam baixas “por um período considerável de tempo” para dizer que uma subida ficará sujeita a um julgamento “paciente”.
Nos mercados, esta quarta-feira, assistiu-se uma transferência de capitais dos activos mais arriscados, principalmente das economias emergentes, para activos vistos como mais seguros, como o dólar e o iene, por exemplo.
Os olhos, entretanto, voltam-se para Moscovo e para aquilo que vai ser feito pelas autoridades. Entre os cenários possíveis está a venda das reservas de ouro ou, num cenário de aprofundamento acentuado da crise, a aplicação de controlos de capital.