Para estes portugueses os "comics" são muito a sério
Miguel Montenegro, Daniel Maia e Daniel Henriques já lá estiveram e sabem do que falam. Do outro lado do Atlântico a banda desenhada é um sonho e um "trabalho monstruoso". O P3 falou com eles e com muitos jovens aspirantes
Em 2003 Miguel Montenegro foi o primeiro português a conseguir trabalhar profissionalmente no mercado norte-americano de banda desenhada. Como ele, outros portugueses também conseguiram vingar nesta área e actualmente são cada vez mais os jovens no nosso país que ambicionam "voar". O P3 foi à procura dos que já levantaram voo e encontrou alguns que sonham — e trabalham — para isso.
São vários os artistas portugueses que já passaram por empresas prestigiadas (Marvel, DC Comics, Dark Horse Comics, etc.) conseguindo alcançar muitos dos seus objectivos com sucesso e ganhando ao mesmo tempo uma noção da pressão que a profissão implica. Eles foram servindo de exemplo aos mais jovens — alguns dos quais admitem abertamente a aspiração de chegarem a empresas prestigiadas de animação.
"De repente, eu existia!"
No último Comic Con foram vários os artistas que estiveram pela zona da Artist's Alley a expôr os seus trabalhos, abertos a conversas por parte de vários curiosos que iam passeando pela convenção, bem como de outros artistas vindos de várias partes do mundo.
Miguel Montenegro é ilustrador profissional em regime free-lance desde os vinte anos de idade. Foi aos onze anos que decidiu que queria ser autor de banda desenhada. “Nessa altura tinha descoberto as revistas da Marvel por intermédio de um primo meu com quem passava as férias de Verão. Fiquei aficionado. Regressado a casa, comecei a comprar as minhas primeiras revistas. Rapidamente percebi que havia pessoas a contar aquelas histórias e que eu poderia ser uma delas. A partir desse momento passei a focar-me nesse objectivo e não parei até o ter alcançado, cerca de uma década depois”.
Miguel conseguiu trabalhar para várias editoras norte-americanas: a Image, a Crossgen, a Dynamite e a TopCow. Contudo foi o facto de ter sido o primeiro português a conseguir fazer um trabalho para a Marvel que catapultou consideravelmente a sua reputação.
O seu amigo e colega Simon Bowland mostrou alguns dos seus trabalhos ao editor de Red Prophet, que acabou por o contratar para substituir o anterior ilustrador dos primeiros números desse título. Miguel fez os desenhos, a arte-final e as cores. Além de Red Prophet, desenhou ainda uma capa dos X-Men. “Nessa altura, como fui o primeiro português a trabalhar para Marvel, houve bastante interesse por parte da comunicação social e de alguns meios culturais. Cheguei mesmo a receber um postal da Secretária da Cultura a congratular-me pelo feito. De repente, eu existia!”.
Daniel Maia é desenhador e “namora” com o mercado artístico americano desde 2003/2004; como Miguel também teve trabalhos publicados em empresas estrangeiras. No começo ainda publicou trabalhos em fanzines e revistas. A sua internacionalização começou na Previews #8 da Diamond Comics, onde publicou pinups desenhadas por ele mesmo com personagens da Wildstorm Studios. Daniel também foi um dos artistas europeus seleccionados pela edição de 2007 do ChsterQuest, um concurso internacional da Marvel Comics que visa procurar novos talentos artísticos; na sequência dessa selecção desenhou “Ms. Marvel Special” onde ganhou destaque por ter sido o terceiro português a desenhar para a Marvel. Daniel também é conhecido por ter criado personagens como “Pão-de-law” e “Hunter”.
Daniel Henriques é “arte-finalista”, tendo começado há cerca de três anos lançando umas páginas “mais esporádicas” para a Marvel. Há cerca de um ano e meio começou a trabalhar para a DC Comics e ainda lançou uns trabalhos para a Dark Horse Comics. Tudo começou em 2010, após ter sido descoberto no Facebook por “arte-finalistas” que já estavam bastante envolvidos na indústria, entre os quais estava Danny Miki, por quem já detinha uma grande admiração. Daniel veio a conhecê-lo e sob a sua alçada estreou-se profissionalmente na indústria de comics norte-americana em 2011.
"Esforços monstruosos"
Depois de ter trabalhado para várias editoras norte-americanas Miguel Montenegro resolveu fazer uma pausa para regressar à faculdade onde concluiu a licenciatura em Psicologia e um mestrado em Psicologia Clínica. Actualmente Miguel dedica-se a “Psicopatos”, uma tira humorística que criou enquanto estava no mestrado. “A inspiração para os Psicopatos vem principalmente de duas fontes: os meus estudos em psicologia e o meu dia-a-dia. Com frequência, retrato situações com que todos nós nos podemos identificar ou então situações estranhas por que passei. Sempre que possível, tento ainda manter uma componente didática associada ao humor”. A página de Facebook actualmente tem mais de 24 mil seguidores, tem um website e uma loja própria para o merchandising, e é publicada em cinco idiomas diferentes.
No entanto Miguel admitiu que muita coisa mudou desde a oportunidade para trabalhar na Marvel até hoje. “Os artistas tinham e têm cada vez menos participação no processo criativo, sendo basicamente esperado que ilustrem as ideias dos escritores. Isso para mim não é suficiente. Percebi também que afinal talvez não quisesse investir as longas horas diárias necessárias para ser autor de banda desenhada a tempo inteiro, muito menos a ilustrar ideias alheias. Prefiro fazer apenas alguns trabalhos esporadicamente porque tenho outros interesses que gosto de explorar”. Por agora Miguel está dedicado a “Psicopatos”, projecto que tem sido bastante aclamado. “Os Psicopatos têm sido muito bem acolhidos por toda a gente. São inclusive usados por professores universitários nas apresentações das suas aulas e seminários, o que para mim é motivo de orgulho”.
Relativamente a acesso a esta área, Daniel Maia referiu que para muitos desenhadores “é difícil entrar". "Mas é muito mais difícil mantermo-nos no sector”, assegura. “Se a maior parte dos fãs que gostassem de trabalhar em Banda Desenhada soubessem o que a área implica provavelmente iriam repensar um pouco nisso. É preciso gostar muito, é preciso não conseguir viver sem fazer banda-desenhada, sem criar, sem mexer com as personagens. É algo muito puxado e que obriga a esforços monstruosos, que implicam negligenciarmos a nossa vida social e problemas de saúde; é um trabalho que requer muito ‘sangue, suor e lágrimas’, mas acaba por ser redimido pela oportunidade de trabalharmos no que gostamos”.
Quantas páginas por dia?
Daniel Henriques também sempre teve o sonho de trabalhar em banda-desenhada. E também não esconde que a realidade é diferente da ficção. “A maior parte das pessoas que entra, a nível de qualidade, já têm que ter um certo patamar para serem seleccionadas. A partir daí é conseguir produzir um X de trabalho dentro de determinados prazos, o que, idealmente em banda-desenhada, significa uma página por dia. Só que existem prazos em que se acaba por ter que se fazer vinte páginas em dez dias, ou, às vezes, menos. Na minha opinião isso é mais exigente: é conseguir manter a qualidade e rapidez do trabalho mensalmente”.
Aos artistas que ambicionam uma carreira artística Miguel Montenegro deixou três conselhos: trabalho e perseverança, estudo do trabalho de outros artistas e ter noção do que consiste realmente ser autor de BD. “Ver um livro publicado com o nosso nome na capa pode ser motivo de orgulho e satisfação, mas com frequência implica centenas de horas de trabalho e dedicação praticamente exclusiva. Só algumas pessoas conseguem se sentir realizadas e satisfeitas nesta actividade”.
Daniel Maia acha que actualmente as redes sociais, que abrem portas a promoção e a networking podem ser armas poderosas para quem as souber usar, mas aconselha sobretudo ao trabalho duro. “A parte essencial é mesmo trabalhar como se não houvesse amanhã. É preciso fazerem-se muitas amostras variadas e tentar fazer chegar o vosso trabalho aos editores de várias formas”.
Uma mudança positiva que Daniel Henriques apontou foi que graças às novas tecnologias qualquer um consegue trabalhar em qualquer lado sem ter que recorrer sempre ao papel e ao lápis. Ainda assim salientou a importância da prática, bem como da criação de contactos nesta área. “Quanto mais se vai fazendo, mais qualidade se vai conseguindo e mais à-vontade se vai ganhando, seja em desenho, seja em arte-final. Com as redes sociais e até mesmo convenções deste género [Comic Con], na minha opinião é mais fácil de se chegar perto de editores e muitas vezes até a outros artistas. Acho que cada vez mais há mais portas por onde se pode entrar, é apenas uma questão de ter aquela dedicação e manter a qualidade”.
Talento descoberto
Um exemplo de um talento que foi recentemente descoberto graças a estes meios é Ricardo Drummond, descoberto e contactado recentemente pela NBA — já lá vamos.
Desde pequeno que tinha paixão pelo desenho — desde que descobriu a colecção de banda desenhada dos seus pais. Curiosamente foi em Arquitectura que se licenciou. “Trabalhei por um ano, mas vi que nessa área as coisas não andam fáceis e percebi que o desenho, a ilustração e a pintura podiam ser mais do que um hobby. Há cerca de três anos resolvi apostar nisso”.
Durante algum tempo Ricardo conseguiu internacionalizar o seu trabalho de ilustração na Europa e na América do Sul. Contudo o jovem recentemente ganhou notoriedade devido ao facto de o seu trabalho ter sido descoberto no universo do basquetebol. Curiosamente foi a própria NBA a recrutar o português através do Behance. “Apanhou-me um bocado de surpresa; recebi um e-mail deles em Setembro. Como no basquetebol trabalham ‘por seasons’, convidaram-me para fazer umas ilustrações durante 2014/2015”.
As ilustrações de Ricardo, (uma das quais online), serão divulgadas nas redes sociais da NBA e terão o propósito de publicitar eventos, recordar antigos jogadores e destacar jogadores actuais. Ainda assim com um portefólio já construído, Ricardo pretende fazer por conseguir algo dentro do universo dos comics, mesmo que no final venha a descobrir que não é esse o seu campo. “Desde pequeno que gosto de banda desenhada. Pode acontecer eu começar a trabalhar nessa área e ver que não tenho pedalada para tal. Mas que gostava de o fazer, gostava”. Ricardo acredita que com esta oportunidade dada pela NBA, outras portas se abrirão, referindo que de agora em diante “é não parar”.
O lado de quem sonha
São cada vez mais os jovens portugueses que sonham em conseguir chegar lá. Miguel, Daniel Maia e Daniel Henriques já começaram a explorar os seus gostos e estilo. Apesar de serem novos alguns deles já sonham em trabalhar em companhias prestigiadas no estrangeiro, outros simplesmente querem dedicar-se a fazer aquilo de que gostam.
Brígida Antunes (conhecida pelo nome artístico “Nonoca”) começou a treinar aos 13/14 anos. Apesar de muitos dos seus gostos se debruçarem sobre arte asiática, principalmente os filmes de Hayao Miyazaki, Brígida também gosta de cartoons e não só. “Gosto de todos os estilos que há, particularmente do estilo semi-realista em que se pode fazer tudo o que se quiser”.
Muito do trabalho de Pedro Sequeira tem as suas influências da Banda Desenhada e no Grafitti. Formou-se em Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e apesar de se ter afastado um pouco do seu campo durante a sua formação aquilo que mais gosta de fazer é de criar personagens, sobretudo “anti-heróis”. “Não correspondem aos padrões do herói tradicional, mas têm a sua importância na história”.
Catarina Azevedo, 18 anos, estuda na ESTGP (em Portalegre) e já sabe que aquilo que quer é animação. “Eu quero ser tudo. Eu se puder quero fazer ilustração, quero ser animadora, quero fazer tanto o rendering, como concept art”. A sua aspiração começou com “As Tartarugas Ninja” começando a desenhar várias vezes essas personagens.
Brígida, agora com 17 anos de idade e no 12º ano, admite que a indústria de entretenimento e animação é a área que definitivamente a atrai: a sua empresa de eleição para a qual gostava de ir é a Dreamworks e ambiciona ir para a The Art Workshop, na Dinamarca, quando terminar o ensino secundário. A jovem admite que daqui a alguns anos se vê a trabalhar na indústria de animação, acreditando que está a ir pelo caminho certo.
Apesar de não ter nenhuma empresa nas suas aspirações, Pedro Sequeira gostava de ter mais oportunidade para explorar aquilo de que gosta e admite que gostava que o desenho fosse para o resto da vida. “Gosto de criar as minhas coisas. Também consigo obedecer a outros padrões se me pedirem, assim como fazer outras coisas, mas também gostava que me dessem oportunidade de explorar a minha linguagem".
Como Brígida, Catarina Azevedo também admite abertamente que aspira a ir para a Dreamworks, apesar de a Pixar ou a Laika, também estarem na sua lista de preferências. Quando o P3 lhe perguntou onde se vê daqui a alguns, respondeu que quer espalhar o seu trabalho pelo mundo. Para já, a jovem procura o seu próprio estilo e divertir-se. “Não estou a pensar no que desenho. Eu simplesmente desenho, que para mim é o mais importante”.