Duchamp e a pintura: uma relação celibatária
Visto como aquele que matou a pintura e, desse modo, praticou o gesto mais radical da história da arte do século XX, afinal nunca deixou de pintar, como mostra uma exposição no Centro Pompidou, em Paris.
E para começar em grande e assinalar a sua rota futura oferecia a primeira retrospectiva francesa de Marcel Duchamp (organizada por Jean Clair e Pontus Hulten), que tinha morrido em 1968. O artista do século XX que maior efeito produzira sobre a arte contemporânea, o inventor dos readymades, era assim consagrado no seu país, com algum atraso em relação ao que sucedera nos Estados Unidos, onde o artista vivera bastantes anos da sua vida. Quase quarenta anos depois, Duchamp regressou ao Beaubourg, mas desta vez para mostrar o que na sua obra há de mais esquecido, escondido ou até improvável: a pintura. A exposição, inaugurada no final de Setembro, tem como título Marcel Duchamp - la peinture, même. É organizada por Cécile Debray e encerra a 5 de Janeiro.
Duchamp pintor não é um título evidente para aquele a quem se imputa geralmente a responsabilidade – o acto mais cheio de consequências para a história da arte do século XX – de ter abandonado, recusado e matado a pintura; não parece consentâneo com aquele que, cultivando o seu papel de anti-artista ou “anartista”, colocou esta pergunta de iconoclasta: “É possível fazer obras que não de sejam ‘de arte’?”. A sua resposta, como sabemos, foram os readymades. A exposição mostra cerca de uma centena de desenhos e pinturas, a maior parte delas pertencentes ao Philadelphia Museum of Art, nos Estados Unidos. É certamente por essas obras nunca terem sido exibidas na Europa que a percepção que temos de Duchamp está muito afastada da experiência de um pintor. No entanto, aquilo que Cécile Debray quis mostrar através desta exposição é que Duchamp nunca abandonou completamente a pintura, mesmo depois de 1917, data do seu urinol, Foutain, o seu readymade recusado pela primeira exposição da Sociedade dos Artistas Independentes, em Nova Iorque.
Uma revisão
Evidentemente, a relação inicial de Duchamp com a pintura já era bem conhecida. Mas, que, afinal, ao contrário do que ele próprio tantas vezes proclamou, a tenha praticado até ao fim da vida, isso corresponde a uma revisão da sua obra. E, até, a uma revisão de um dos mitos fundadores da arte do século XX. O primeiro episódio desse reclamado abandono foi traumático. Em 1912, Duchamp já tinha feito um rápido percurso, em pouco mais de meia dúzia de anos, que o fizera passar por quase todas as tendências estilísticas e movimentos surgidos desde 1880, até chegar ao cubismo. O quadro que quis expor, nesse ano, no Salon des Indépendants, Nu descendant l’escalier, nº 2 (havia uma versão anterior que era a nº 1) era uma experiência cubista cujo título – mas não só - não agradou a outros cubistas. Todos consideravam que era um título demasiado provocador e, através dos dois irmãos de Duchamp que também eram artistas, tentaram convencê-lo a alterá-lo.
O resultado foi uma recusa veemente e escandalizada, que deu lugar a um drama familiar por os irmãos estarem implicados. Falando mais tarde desse quadro, Duchamp disse que quis criar “uma imagem estática do movimento”, baseado na ideia de que “o movimento é uma abstracção, uma dedução articulada no interior do quadro (...). No fundo, é o olho do espectador que incorpora o movimento no quadro”. E acrescentou, falando dos cubistas: “Havia dois ou três anos que o cubismo durava e eles tinham uma linha de conduta absolutamente clara, direita, prevendo tudo o que devia acontecer. Eu achei isso insensato, de tão ingénuo”. A sua aventura cubista tinha sido, assim, passageira: “o cubismo interessou-me apenas durante alguns meses: no final de 1912, já pensava noutra coisa. Era portanto uma forma de experiência, mais do que uma convicção”, disse Duchamp numa das suas entrevistas a Pierre Cabanne. Nos seus testemunhos tardios, várias vezes insistirá neste episódio traumático de 1912, indicando-o como causa original da sua ruptura com a pintura e com o cubismo. No entanto, ele vai insistir posteriormente no programa de “desteorizar o cubismo”. E quanto ao abandono da pintura, aí temos esta exposição que mostra que as coisas não foram bem assim.
Na sequência desse episódio que o decepcionou, em 1912, partiu para Munique decidido a traçar o seu próprio percurso para além da pintura e dos seus limites. Quando regressou a Paris, lançou esta palavra de ordem: “Marcel, acabou a pintura, procura trabalho”. Mas essa palavra de ordem haveria de ser por várias vezes desmentida. Acrescente-se ainda esta curiosidade que tem algum significado: na sua viagem para Munique, Duchamp passou então por Basileia e, no museu, viu quadros do artista suíço, simbolista, Arnold Böcklin (1827-1901) que muito o impressionaram. Em Böcklin, viu ele uma reacção contra o realismo, contra aquilo a que chamava a “pintura retiniana”, da qual, dizia ele, o impressionismo e o fauvismo eram exemplos supremos, fazendo apelo aos “olhos mais do que à matéria cinzenta”. Não é fácil compreender este fascínio de Duchamp por um pintor simbolista, alegórico, interessado pelos mitos antigos.
Ponto de chegada
A exposição que podemos ver no Centro Pompidou privilegia sobretudo os anos que vão de 1910 a 1923, ou seja, o ano de La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, geralmente conhecido por Le Grand Verre. Esta obra hermética esteve em gestação durante mais de uma década e, em 1923, Duchamp decretou que ela tinha chegado ao fim no estado de “inacabada”. Cécile Debray concede-lhe um estatuto ambíguo: “Simultaneamente a negação e a sublimação da pintura através de um quadro impossível”. Não podemos entender La Mariée mise à nu... sem ter em conta esta afirmação: “Eu queria distanciar-me do acto físico da pintura. Estava nitidamente mais interessado em recriar ideias na pintura [...] queria colocar a pintura ao serviço do espírito”. Sabemos a enorme fortuna que teve o Grand Verre para a produção de conceitos e para as teorias sobre a arte. Basta lembrar as “máquinas celibatárias” de Deleuze e Guattari. Thierry de Duve, por sua vez, considerou que essa obra “faz o luto da pintura”, precipitado pelo “nominalismo pictural” que o readymade encarna. O readymade é assim visto como o acto pelo qual o abandono da pintura tem um sentido completamente diferente de um simples cessar de actividade. O primeiro estudo para o Grand Verre, fê-lo Duchamp em Munique. E durante dez anos fez dele um objecto de ruminação pseudo-científica fantástica e hermética sobre o desejo sexual. Era um ponto de chegada da maneira intelectual como Duchamp encarava a pintura (de Duchamp, tinha Breton dito que era “o homem maios inteligente do século”). As explicações que já nos anos 30 forneceu desta obra permitem perceber a construção complexa desta “máquina abstracta” em vidro. E já no final da sua vida, Duchamp comparou este seu projecto artístico ao dos “religiosos do Renascimento”.
Antes dessa obra complexa e híbrida de 1923, que incorpora a pintura, mas não é apenas uma obra de pintura (constituída por dois grandes painéis de vidro, dispostos na vertical, um em cima do outro, não deveria sequer ter uma forma estético-plástica, dada a transparência do vidro), Duchamp já tinha desmentido, em 1918, o abandono da pintura com uma obra misteriosamente intitulada Tu m’ (muito se tem especulado sobre este título; houve quem visse nele um anagrama de Mutt, que assinava a Fountain, de 1917). Depois de terminar Tu m’, Duchamp abandonou, isso sim, a pintura de cavalete. Essa foi a sua última pintura a óleo em tela, mas não foi o abandono programático da pintura. Essa tela enorme tem o estatuto de quadro final, de momento paradigmático, tanto na carreira do artista, que era visto como tendo abandonado aí a pintura (cumprindo assim os veredictos pronunciados anteriormente), como na própria história do modernismo. O próprio Duchamp qualificou esta obra como “resumo” ou “inventário”.
Não foi afinal essa a última vez que regressou à pintura, apesar da cruzada pública que lançou contra ela. A pintura tornou-se, aliás, um grande motivo das suas piruetas públicas, como aquela que em 1936 fez numa declaração à revista Time: “Preferia ser fuzilado, suicidar-me ou matar alguém do que voltar a pintura”. Um ano antes, em 1935, tinha no entanto voltado ao medium pictural, mas de maneira indirecta. Tinha decidido criar meticulosas réplicas e reproduções em miniatura das suas próprias obras. Era uma espécie de “museu portátil” duchampiano, que fazia lembrar os antigos “cabinets de curiosités”. Chamou-lhe Boîte-en-valise. Das sessenta e nove peças que compunham a edição original (só apresentada publicamente em 1941), vinte e seis eram reproduções de pinturas, entre as quais o Grand Verre.
A exposição do Pompidou apresenta a relação de Marcel Duchamp com a pintura, articulada em oito momentos. Um desses momentos é pouco anterior à sua morte, quando o artista realiza nove águas-fortes consgradas ao tema dos amantes: são os Morceaux choisis, onde se destacam dois “d’après Ingres” e um “d’après Carnach”. Mas a sua relação mais importante e mais secreta com a pintura, e que está para além de outras experiências episódicas, é aquela que se consuma numa obra para onde conflui toda a exposição. Trata-se de Étant donnés:1º la chute d’eau, 2º le gaz d’ éclairage. Esta obra misteriosa, que faz uma síntese das técnicas tradicionais da escultura na obra de Duchamp, só foi descoberta depois da morte do artista e soube-se que tinha sido preparada durante mais de vinte anos. A relação desta obra com o Grand Verre é evidente e tem sido longamente estudada. O que ela mostra – e essa é a tese desta exposição – é que afinal o ponto de chegada do percurso de Duchamp, feito de grandes buscas e grandes rejeições, é afinal a pintura. Um Duchamp reinventor da pintura mais do que o seu destruidor, eis uma revisão surpreendente da sua obra que lança um enorme desafio e obriga a uma releitura cuidadosa de tudo – e é muito – o que sobre ele se escreveu.