Está a chegar a altura do ano em que a subcomissária Aurora ameaça cortar crianças ao meio, à catanada
Disputas entre as famílias pelo acompanhamento dos filhos no Natal contadas por uma polícia que trabalha na Baixa de Lisboa.
No último dia de aulas antes do Natal há crianças que voltam a ter pai e mãe. Mas aquilo que podia ser uma feliz reunião familiar de um casal há muito desavindo transforma-se, afinal, numa disputa sem quartel: o recém-chegado pai diz que é a sua vez de levar o filho consigo para passar a quadra natalícia; a mãe, por seu turno, não deixa partir a criança, alegando que o ex-marido esteve ausente a maior parte do ano, ou que nem sequer é a sua vez. Às vezes os papéis invertem-se, e é a progenitora a reclamar direitos sobre um filho que ignora fora das épocas festivas. Aurora Dantier sabe do que fala: a subcomissária que dirige as esquadras da Baixa de Lisboa já teve de ajudar a resolver vários destes casos, passados à porta das escolas. “De repente vem o Natal e lembram-se da existência das crianças”, contou esta sexta-feira, num seminário sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes organizado pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa. Salomónica, a graduada não faz a coisa por menos: “Digo aos pais que tenho uma catana no porta-bagagens. É só decidirem se querem levar consigo a parte esquerda ou a parte direita da criança”.
Os maus tratos infantis, como dizem alguns especialistas na matéria, são um saco onde cabe tudo: da pancada às queimaduras com cigarros, da negligência à violação. E Aurora Dantier já viu de quase tudo. Em caso de dúvida, joga pelo seguro: leva os menores de casa dos pais. “Quero dormir descansada e não acordar com um telefonema a dizer que a criança teve de ser hospitalizada. Mas ainda me custa levar as crianças”. Lembra-se daquela menina de dez anos, fechada à chave no quarto de pensão onde morava com a mãe durante 11 horas seguidas, com um copo de leite, bolachinhas e uma televisão a fingirem-lhe de companhia. “Era Março e só tinha um pijama vestido. A janela do quarto estava aberta”. A progenitora tinha ido arranjar o cabelo. “Voltou bêbada, com outra criança de 15 meses ao colo”. Recorda-se de outra mulher a afogar o filho nas fontes do Martim Moniz, para lhe arrancar os espíritos do corpo. Foi apanhada a tempo pelas autoridades. E do rapaz de 11 anos a quem ninguém conseguia tocar nas costas, de tão espancado que tinha sido pelo pai. Morava com um irmão de seis anos, a quem um dia “a mãe queimou as mãos, colocando-as no fogo”. Aproximava-se o Natal quando foram resgatados da casa onde tinham passado horrores. “Os agentes da PSP lançaram uma campanha de angariação de fundos para não ficarem sem brinquedos”, relatou a subcomissária. Mais tarde haviam de voltar a passar alguns fins-de-semana com os progenitores. “O pai voltou a agredir um deles”.
Quando isso acontece, é preciso fotografar as crianças o mais depressa possível. Retratar as marcas da violência, a roupa por vezes imunda, o cabelo desalinhado. São provas preciosas em tribunal, quando for altura de decidir, de uma vez por todas, quem tem ou não condições de exercer o poder parental. Antes disso acontecer, às vezes aparece na esquadra uma tia a oferecer-se: “Venho ficar com a criança. A Segurança Social paga quanto?”.
Dados do Instituto de Medicina Legal referentes ao triénio 2011-2013 revelam que 45% dos maus tratos a crianças até aos seis anos são perpetrados pelos progenitores, normalmente usando “armas naturais”: as mãos e os pés.
Também presente no seminário, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, reconheceu a existência de deficiências na forma como os tribunais acompanham as crianças vítimas de violência nos processos judiciais. É preciso que as crianças se sintam seguras a depor e que os magistrados falem a sua linguagem, defendeu.