Está a chegar a altura do ano em que a subcomissária Aurora ameaça cortar crianças ao meio, à catanada

Disputas entre as famílias pelo acompanhamento dos filhos no Natal contadas por uma polícia que trabalha na Baixa de Lisboa.

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Subcomissária já teve de ajudar a resolver vários destes casos Daniel Rocha

No último dia de aulas antes do Natal há crianças que voltam a ter pai e mãe. Mas aquilo que podia ser uma feliz reunião familiar de um casal há muito desavindo transforma-se, afinal, numa disputa sem quartel: o recém-chegado pai diz que é a sua vez de levar o filho consigo para passar a quadra natalícia; a mãe, por seu turno, não deixa partir a criança, alegando que o ex-marido esteve ausente a maior parte do ano, ou que nem sequer é a sua vez. Às vezes os papéis invertem-se, e é a progenitora a reclamar direitos sobre um filho que ignora fora das épocas festivas. Aurora Dantier sabe do que fala: a subcomissária que dirige as esquadras da Baixa de Lisboa já teve de ajudar a resolver vários destes casos, passados à porta das escolas. “De repente vem o Natal e lembram-se da existência das crianças”, contou esta sexta-feira, num seminário sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes organizado pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa. Salomónica, a graduada não faz a coisa por menos: “Digo aos pais que tenho uma catana no porta-bagagens. É só decidirem se querem levar consigo a parte esquerda ou a parte direita da criança”.

Os maus tratos infantis, como dizem alguns especialistas na matéria, são um saco onde cabe tudo: da pancada às queimaduras com cigarros, da negligência à violação. E Aurora Dantier já viu de quase tudo. Em caso de dúvida, joga pelo seguro: leva os menores de casa dos pais. “Quero dormir descansada e não acordar com um telefonema a dizer que a criança teve de ser hospitalizada. Mas ainda me custa levar as crianças”. Lembra-se daquela menina de dez anos, fechada à chave no quarto de pensão onde morava com a mãe durante 11 horas seguidas, com um copo de leite, bolachinhas e uma televisão a fingirem-lhe de companhia. “Era Março e só tinha um pijama vestido. A janela do quarto estava aberta”. A progenitora tinha ido arranjar o cabelo. “Voltou bêbada, com outra criança de 15 meses ao colo”. Recorda-se de outra mulher a afogar o filho nas fontes do Martim Moniz, para lhe arrancar os espíritos do corpo. Foi apanhada a tempo pelas autoridades. E do rapaz de 11 anos a quem ninguém conseguia tocar nas costas, de tão espancado que tinha sido pelo pai. Morava com um irmão de seis anos, a quem um dia “a mãe queimou as mãos, colocando-as no fogo”. Aproximava-se o Natal quando foram resgatados da casa onde tinham passado horrores. “Os agentes da PSP lançaram uma campanha de angariação de fundos para não ficarem sem brinquedos”, relatou a subcomissária. Mais tarde haviam de voltar a passar alguns fins-de-semana com os progenitores. “O pai voltou a agredir um deles”.

Quando isso acontece, é preciso fotografar as crianças o mais depressa possível. Retratar as marcas da violência, a roupa por vezes imunda, o cabelo desalinhado. São provas preciosas em tribunal, quando for altura de decidir, de uma vez por todas, quem tem ou não condições de exercer o poder parental. Antes disso acontecer, às vezes aparece na esquadra uma tia a oferecer-se: “Venho ficar com a criança. A Segurança Social paga quanto?”.

Dados do Instituto de Medicina Legal referentes ao triénio 2011-2013 revelam que 45% dos maus tratos a crianças até aos seis anos são perpetrados pelos progenitores, normalmente usando “armas naturais”: as mãos e os pés.

Também presente no seminário, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, reconheceu a existência de deficiências na forma como os tribunais acompanham as crianças vítimas de violência nos processos judiciais. É preciso que as crianças se sintam seguras a depor e que os magistrados falem a sua linguagem, defendeu.

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