Mais processos e menos pessoas nas comissões de protecção de crianças
No total das 697 pessoas afectadas pela requalificação, os técnicos das comissões são uma pequena minoria. Mas alguns chegam a ter 100 processos em mãos. “E 100 processos são 100 crianças em risco.”
A crise não explica tudo, continua Rosinda Antunes, mas os casos têm sido cada vez mais frequentes na CPCJ de Matosinhos. Também por isso, a dispensa de trabalhadores em curso noutras CPCJ “está a levantar muitos medos” nesta comissão com um dos maiores números de casos sinalizados de crianças em risco no país, e onde quatro técnicos de uma equipa permanente de oito são da Segurança Social. A dispensa de trabalhadores está a fazer-se no quadro do programa de requalificação que o Governo quer ver concluído até 18 de Dezembro.
No universo global dos 697 funcionários do Instituto da Segurança Social (ISS) abrangidos, os das comissões de protecção representam uma minoria. Serão entre 15 e 20 representantes da Segurança Social, segundo dados da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR).
Mas cada pessoa chega a ter 100 processos em mãos. “Cem processos são cem crianças em risco”, salienta a presidente da CPCJ do Barreiro, Rita Carvalho. Cem é o número de processos que estão a ser acompanhados pela sua adjunta, no cargo de secretária da comissão, que foi notificada no âmbito da requalificação e dispensada das suas funções.
No mapa das 305 comissões instaladas pelo país em 2013, os distritos de Braga, Aveiro, Setúbal e Porto estão entre os mais afectados pela requalificação dos trabalhadores da Segurança Social. No panorama nacional, em 2013, havia mais 505 membros de comissões do que no anterior quando eram, no total, 1282 pessoas. Mas também nesse ano, as comissões enfrentaram um aumento do número de casos.
No país todo, foram tratados pelas comissões mais 2560 processos do que em 2012, quando também se registou um aumento de mais 1066 processos de 2011 – ano em que foram no total tratados 60007 processos (instaurados, reabertos ou transitados do ano anterior).
A equipa de Matosinhos é uma das que têm sentido esse aumento nos últimos anos. Em 2013, lidou com 1253, ou seja, mais 156 processos do que em 2012, ano em que já se tinha registado um incremento de 120 casos.
A responsável Rosinda Antunes traça um quadro das situações mais frequentes que levam as crianças e jovens a serem sinalizados e que reflectem uma realidade nacional também descrita no relatório de 2013 da comissão nacional: “Muita violência doméstica, em que estão inseridas crianças; jovens que não se dão com os pais e andam fugidos; um abandono escolar brutal; uma incapacidade parental ou pais que não se entendem entre eles e envolvem os filhos [nas discussões relativas à regulação do poder parental].”
Nalguns casos, as situações chegam às comissões num ponto em que têm de ser resolvidas imediatamente. “São casos de pessoas que ficam sem retaguarda nenhuma. E temos de encontrar uma solução em 24 horas” para prevenir situações de perigo para a criança ou o jovem, resume.
Centenas de processos
Daí que Rita Carvalho, presidente da CPCJ do Barreiro, qualifique esta situação de “inesperadíssima” e “sem sentido nenhum” e confesse que ainda tem “esperança de que seja invertida”. Também para Ana Núncio, que acumula funções de representante da Segurança Social nas CPCJ de Alcácer do Sal e de Grândola, “foi uma surpresa”. E acrescenta: “Estamos todos a exercer funções.”
Para Adélia Silva, que acumula as funções de representante da Segurança Social nas CPCJ de Sines, a que preside, e Santiago do Cacém, “a situação é gravíssima”. Com o anúncio da sua saída, o presidente da Câmara de Santiago do Cacém, Álvaro Beijinha, disse em comunicado que ficava comprometido “um trabalho decisivo na prevenção e nas medidas de acompanhamento em casos de maus-tratos e outras situações”. E acrescentou: “Estamos a falar de dezenas e de dezenas de processos.”
“Existe o desejo e o propósito claro de manter a representação da Segurança Social nas comissões e de garantir a sua funcionalidade”, disse o presidente da CNPCJR Armando Leandro ao PÚBLICO. “Todos os esforços estão a ser feitos” para garantir que as comissões continuem a funcionar como estão, assegura sem explicar se houve ou não garantias de que as pessoas agora dispensadas serão substituídas ou poderão ainda permanecer nas comissões.
“Privatização camuflada”?
Além dos representantes nas comissões, entre as pessoas dispensadas, há ainda dezenas que estão como reforços técnicos das comissões. E técnicos das equipas de apoio técnico aos Tribunais de Menores e de Família, que trabalham nos processos quando estes transitam para a Justiça por ausência de consentimento dos pais – como o caso noticiado este fim-de-semana, em que quatro crianças foram retiradas dos pais, que conduziam, com eles no carro, alcoolizados, no distrito de Aveiro.
O perigo, dizem pessoas ligadas ao sector, é que o Estado, obrigado a reduzir pessoal, esteja apostado em contratar precários e deixe de prestar estes serviços, naquilo que é descrito por “privatização camuflada” do sistema de protecção de crianças e jovens.
As pessoas têm sido informadas pessoalmente pelos centros distritais da Segurança Social e notificadas por carta, na qual se justifica a sua dispensa por estarem integradas em carreiras especiais (não revistas) e categorias que não têm enquadramento nas actuais competências do ISS. Além dos educadores, há assistentes operacionais e outros técnicos. Nalguns casos, as pessoas são avisadas da “extinção do posto de trabalho”.
As perguntas enviadas pelo PÚBLICO ao Instituto da Segurança Social não tiveram resposta, ficando por explicar se os profissionais agora dispensados serão substituídos. Ou se as comissões vão funcionar com menos pessoas.