Clérigos regressam ao figurino original
A Igreja dos Clérigos reabre ao público esta sexta-feira, restaurada e devolvida às cores e ao brilho originais do projecto de Nasoni. Tem novos espaços musealizados, e a Torre vai estar ainda mais no centro do roteiro turístico da cidade do Porto.
A festa da reabertura – recorde-se que a Torre manteve-se sempre aberta a visitas durante todo o tempo, e continuou a ser um dos monumentos mais procurados no Porto – vai decorrer durante todo o fim-de-semana, com um programa que contempla música, nomeadamente através do regresso à actividade dos dois órgãos barrocos da igreja depois de restaurados, mas também ópera, jazz e até DJs, além de performances visuais e novo circo – tudo com entrada livre até domingo.
A intervenção de restauro, promovida pela Irmandade dos Clérigos, foi dirigida pelo arquitecto João Carlos Santos, que à data do lançamento do projecto, em 2010, integrava a equipa da Direcção-Regional de Cultura do Norte – actualmente, e desde o ano passado, é subdirector da Direcção-Geral do Património Cultural.
“O nosso trabalho teve como objectivo global o restauro, a reposição do figurino original do edifício, e a sua adaptação às exigências actuais, tendo também em vista o turismo”, explicou João Carlos Santos ao PÚBLICO, no início da visita guiada na quarta-feira, quando os Clérigos eram ainda um ruidoso estaleiro de obras.
A primeira alteração visível no novo organigrama deste edifício que é um expoente do estilo barroco e Monumento Nacional desde 1910 é a passagem da entrada da Rua de S. Filipe de Nery para a Rua da Assunção. Aqui é visível a principal inovação no edifício com a instalação de um elevador dentro de uma coluna de cor cinzenta que sobe até ao quarto piso, que inclui também sanitários e uma área técnica.
“Este núcleo do elevador é uma intervenção quase cirúrgica, que cria uma espécie de coração novo do edifício”, explica o arquitecto junto à nova entrada, que contém um átrio de recepção e uma loja. A partir daqui, o visitante pode escolher três sentidos diferentes para a visita: a Igreja (que se manterá de acesso gratuito), a Torre ou o Museu, sendo este equipamento a principal inovação nos Clérigos.
Para além da imagem exterior deste monumento que, desde a sua conclusão em 1763, é o principal ex-libris da cidade, é o interior da Igreja que melhor espelha a arte de Nasoni. O restauro da talha dourada e do altar em mármore – de autoria do arquitecto Manuel dos Santos Porto, um dos colaboradores de Nasoni no projecto – repôs o brilho original do templo. “Uma das coisas mais impressionantes nesta igreja que tem um formato oval atípico é o tecto em cúpula, com escaiolas ou pinturas de fingimento, a imitar o granito e o mármore”, diz João Carlos Santos, explicando que a distinção entre os materiais verdadeiros e a imitação “só se consegue fazer pela temperatura”.
Numa intervenção que globalmente não resultou em nenhuma surpresa, a não ser a confirmação de que se trata de “uma construção exemplar e fantástica" – "está tudo no sítio”, nota o arquitecto –, houve contudo algumas pequenas descobertas. Entre elas está uma pintura sobre o reboco de um altar lateral, que a equipa de João Carlos Santos decidiu deixar visível – “pode ter sido um estudo para a decoração da talha”, admite o arquitecto, que foi também o responsável pelo restauro do Mosteiro de Tibães, em Braga, do projecto de valorização das áreas poente e norte do Palácio da Ajuda, em Lisboa, cujas obras deverão finalmente avançar, e do último projecto apresentado para a reclassificação do Mercado do Bolhão, no Porto.
Túmulo de Nasoni?
Foi também descoberta, na fase final das obras e de forma ocasional – “já quase no fim da esperança”, disse ao PÚBLICO o padre Américo Aguiar –, a entrada para uma cripta do século XVIII, que guarda uma dezena de sepulturas, a maior parte delas ainda intactas. A hipótese de entre elas se encontrarem os restos mortais de Nicolau Nasoni foi de novo levantada, mas essa é uma investigação que o presidente da Irmandade dos Clérigos diz que terá de ficar para depois.
“Vamos contactar várias entidades e estabelecer uma metodologia para avançarmos nesta pesquisa”, diz o padre Américo Aguiar. Refira-se que a localização do túmulo de Nasoni, que se sabe, pelos registos históricos dos Clérigos, que “foi sepultado nesta igreja, sendo assistido pela Irmandade como pobre e se lhe fizeram os três ofícios como também da sepultura”, é um mistério que tem mobilizado a atenção de investigadores ao longo do tempo.
Uma dúvida que entretanto foi resolvida, na sequência do restauro dos retratos e outros bens móveis da Irmandade realizado na escola da Universidade Católica, foi a identificação de uma pintura, que a certa altura alguém admitiu poder representar o arquitecto. “Essa é a história de uma mentira várias vezes repetida…”, graceja o padre Américo Aguiar, explicando que o retrato em causa é apenas de um benfeitor da Irmandade, cujo nome, António da Cunha Barbosa, foi identificado com a limpeza do quadro.
Este e muitos outros retratos decoram as paredes em volta da “fantástica escadaria principal”, nota João Carlos Santos, a partir de onde se faz também a derivação para os diferentes sentidos da visita. Para o acesso à Torre, há entradas a partir de três pisos diferentes, que até agora estavam entaipadas. Em cada uma das salas de acesso foram instalados painéis interpretativos da história da Irmandade, da vida de Nasoni e da sua obra – os comissários sendo os investigadores Manuel Montenegro, Giovanni Tedesco e Francisco Queirós.
“Para além desta informação histórica e patrimonial, estes espaços têm a mais-valia de fazerem a gestão dos fluxos de visitantes, evitando mesmo situações de pânico que às vezes se verificavam na subida da torre”, diz João Carlos Santos. Outra inovação no percurso da torre é a instalação de guardas nas balaustradas e, no cimo, “um leitor de paisagem” com a identificação dos edifícios mais representativos da cidade, informando a distância e a duração do passeio a pé até cada um deles, a partir dos Clérigos.
Museu dos Cristos só na Páscoa
O corpo principal do edifício foi musealizado num percurso por três níveis e diversas salas, que permitirão conhecer também a história da Irmandade através de mobiliário, como a arca de três chaves do cartório, a sala do cofre, retábulos e outros testemunhos das diferentes épocas e utilizações do complexo, como a antiga enfermaria.
No piso 3, vai ser possível ver já a partir de hoje uma exposição de fotografia de Luís Ferreira Alves a documentar a intervenção agora realizada no monumento – e João Carlos Santos projecta também lançar um livro sobre o tema, talvez na Páscoa.
É também para essa data que está prevista a inauguração do Museu dos Cristos, que irá expor a colecção de crucifixos de António Miranda, um coleccionador de Baião a morar em Lisboa. E ainda a extensão do museu ao coro alto da igreja, com uma instalação interpretativa da talha dourada e vitrinas com peças e adereços da Irmandade.
A reabertura da Igreja dos Clérigos é também pretexto para a edição, pela Direcção-Regional de Cultura do Norte, de um desdobrável sobre a obra de Nasoni no Porto e Grande Porto. O arquitecto Manuel Montenegro, autor de uma tese sobre Nasoni ainda à espera de publicação, é um dos autores desta edição especialmente destinada aos turistas e interessados na arquitectura do mestre italiano.
Uma igreja oval atípica
Montenegro, que acompanhou também a visita do PÚBLICO aos Clérigos, chama a atenção para a importância do edifício, em particular pela planta oval da igreja, “que é muito pouco comum”. O arquitecto diz que, em Portugal, existe apenas uma igreja com esse formato, em Maceira-Dão, perto de Viseu. "Em Portugal, este tipo de planta não teve muita adesão”, mas viria a ser replicado no Brasil, certamente em consequência da emigração para o lado de lá do Atlântico de vários mestres-pedreiros que tinham trabalhado nos Clérigos, refere o arquitecto.
A “petrificação dos elementos decorativos (fogaréus, festões, fontes…), que Nasoni – que teve formação de pintor e de autor de arquitecturas efémeras nos seus primeiros anos em Itália – aqui realizou é uma das marcas dos Clérigos", como das outras obras que depois projectou no Porto e no Norte do país, nota Montenegro.
No caso dos Clérigos, o investigador assinala também a importância que o monumento adquiriu na modernização da estrutura urbana do Porto. “Estamos a falar de um edifício que estava a ser instalado na periferia, mas que cria um novo eixo” para o alargamento das fronteiras antigas da cidade", diz. “Era impensável entender a nova centralidade da Praça da Liberdade e da Avenida dos Aliados sem esta tensão que se cria entre a Igreja dos Clérigos e a de Santo Ildefonso", no outro lado da encosta.
“É um edifício que cria cidade”, conclui e enfatiza Manuel Montenegro.