"Isto não é um problema entre brancos e negros. É uma crise nacional"

O caso Eric Garner pode ser o princípio de um movimento de protesto que, mais do que racial, é social. Crise, tensão, justiça são palavras a acompanhar manifestantes de Nova Iorque que estão a alastrar a todo o país.

Fotogaleria
Manifestação em Nova Iorque no dia 5 de Dezembro Andrew Kelly/Reuters
Fotogaleria
"Não consigo respirar" já é palavra de ordem Adrees Latif/Reuters
Fotogaleria
Os manifestantes denunciam a impunidade dos polícias Adrees Latif/Reuters
Fotogaleria
Os protestos estenderam-se a Berkeley, na Califórnia, no dia 6 de Dezembro Noah Berger/Reuters
Fotogaleria
Na Califórnia, a polícia investiu contra os manifestantes Alex Goodlet/AFP

É o dia seguinte à decisão do júri que deixou perplexa a cidade de Nova Iorque. De forma quase espontânea, mais de três mil pessoas saíram naquela noite, muitas atravessaram a ponte de Brooklyn, repetindo as palavras de Eric Garner quando o polícia lhe aplicou o chamado ‘golpe de gravata’ (já banido dos procedimentos da Polícia de Nova Iorque) e o derrubou no chão, colocando-lhe o peso do corpo sobre o peito. “Não consigo respirar”. Uma frase repetida onze vezes até chegar sem vida ao hospital. O relatório da autópsia revelou morte por asfixia.

Durante nove semanas, 50 pessoas analisaram mais de 60 provas, entre elas o vídeo que um amigo de Garner fez com o telemóvel no momento da detenção e publicado no Youtube e decidiu não indiciar Daniel Pantaleo. O anúncio foi feito na quarta-feira, dois dias depois de outro júri ter tomando uma decisão semelhante no caso de Michael Brown, o rapaz de 18 anos morto em Fergusson, Missouri, a 6 de Agosto. Brown, como Garner, estava desarmado no momento da detenção e, como ele, morreu na sequência de excesso de violência por parte das forças policiais. Os protestos que se seguiram à decisão do júri de Fergusson provocaram confrontos nas ruas daquela cidade do Missouri. Em Nova Iorque, tudo se passou de forma mais pacífica, mas os manifestantes que ao longo das noites seguintes, de forma mais ou menos organizada, fecharam a rua 15, junto a Union Square, se deitaram no chão da Grande Station, ou subiram a Quinta Avenida até ao Central Parque, sublinharam um sentimento: sufoco. De quarta a domingo, a cada noite, observadores e manifestantes lêem nesta acção o que parece um ponto de viragem, o início de um movimento que (querem os mais optimistas) pode ser mais do que simbólico.

“Este não é um problema entre brancos e negros. É uma crise nacional“. A autora da frase é filha de Eric Garner. Quer, com ela, sublinhar que o problema ultrapassa o da raça e as suas palavras juntam-se a um coro que vai sendo cada vez mais complexo na argumentação, substituindo a perplexidade inicial perante uma decisão começou por ser interpretada como racial, mas que à medida que as horas passam começa a surgir como sinal de algo mais. A cada noite de protestos, a cada notícia de uso de força policial extrema, a cada editorial de jornais ou opinião em blogues ou redes sociais. A discussão centra-se no abuso da força policial e numa justiça que muitos consideram ser aplicada de forma distinta consoante a raça ou a escala social. Haverá argumentos para uma reforma do sistema policial como sugerem alguns. Há pelo menos uma nota a reter para já: se os protestos em Fergusson não uniram democratas e republicanos no coro de protestos contra uma decisão judicial, Garner teve o efeito de quase unanimidade em Washington. Tudo porque houve um vídeo onde parece clara a desproporção do uso da força.

Na noite de quinta-feira, uma cartolina branca escrita a marcador destacava-se num passeio junto ao mercado de Chelsea: “Desarmem a polícia”. Ao lado, o que sobrava da primeira página de um tablóide pedia justiça no caso Garner, da mesma forma que o editorial do New York Times chamava a atenção para o contraste entre a decisão do júri, baseada no argumento de que a acção do polícia tinha sido em reação à atitude de resistência, e o que as imagens reveladas pelo vídeo demostravam: os gritos “não consigo respirar” enquanto o polícia o comprimia junto ao chão. Para que serve então o anuncio de mais câmaras de vigilância pela cidade para garantir a segurança dos cidadãos se uma câmara que revelou tudo afinal não serve de prova? Por não ser a câmara de um polícia? São muitas as questões.

Garner era mais uma vítima negra. Ainda o New York Times, logo da edição de dia 4, apresentava 12 casos, entre os mais polémicos que opuseram forças policiais e minorias étnicas em Nova Iorque, desde 1990. Em todos, a justiça decidiu pela ilibação dos agentes. Racismo? Outra vez a pergunta, a juntar-se a outros cartazes nas ruas: “As vidas dos negros importam”; “Sou negro, não atirem”. Isto quando a América está a ser governada pelo primeiro Presidente negro da sua História e tem ainda como procurador público outro negro, Eric H. Holder, que em breve será substituído por Loretta Lynch, outra afro-americana. Barack Obama já veio dizer que os direitos da Constituição têm de estar mais conformes com a sua prática. Quanto a Bill de Blasio, o presidente da câmara de Nova Iorque, pediu uma maior atenção ao modo como são dados os treinos aos cerca de 35 mil polícias da cidade. O padrão dos discursos oficiais é o de que há um uso excessivo de força, reforçado por outra notícia, na sexta-feira, a de que vai haver um júri para decidir sobre o caso Akai Gurley.

Gurley de 28 anos, saía de casa, em Brooklyn, acompanhado pela namorada, quando um polícia disparou no momento em que ele abria a porta do prédio onde vivia. Vinha desarmado e morreu na sequência do tiro. O polícia, descrito como inexperiente, fazia uma rusga de rotina. Gurley era negro.

À procura de argumentos
“Não consigo ter uma reacção a isto que não seja a do momento, igual à de tanta gente que está indignada. Gostava de poder parar para pensar e quem sabe escrever algo que possa fazer a diferença”, referiu ao Público Teju Cole, o escritor americano de origem nigeriana, uma das vozes mais intervenientes na defesa dos direitos das minorias étnicas. Ele esteve na Ponte de Brooklyn na noite do dia 3, quando se soube da decisão do júri de Staten Island. “Este momento de crise tem como raiz o que sempre foi a realidade dos negros na América”, afirma no que considera poder ser lido como um slogan de esquerda. É, para já a sua leitura dos factos.

Com um sublinhado. Continuam a ser os negros a estar entre os mais excluídos numa sociedade em crise, como a primeira geração da História a sofrer uma regressão em relação à geração anterior, onde quem não tem dinheiro vê negados ou diminuídos direitos essenciais, entre eles, saúde e casa, sublinha agora outro escritor, Michael Cunningham.

Os números para tentar enquadrar o problema têm estado a ser divulgados por activistas. Muitos em tom de pergunta a que vai faltando resposta: como é quem com uma população que é 13,5% da população americana, a comunidade negra tenha 20% dos detidos na América e 40% dos condenados à morte?

Mas há quem se apresente ao lado do júri no caso de Garner em particular: ele terá resistido à detenção ao ter argumentado com o primeiro polícia que o abordou — terá dito que não tinha mais cigarros para vender —, e que, de facto, estava a cometer um crime. Isso servia como atenuante ao agente Pantaleo. Serviria?

Vender cigarros avulso é uma actividade mais ou menos vulgar em zonas mais pobres de Nova Iorque, cidade onde um maço de tabaco custa em média 14 dólares (cerca de 11,5 euros), mais do dobro do que custa, por exemplo, na Virginia, e o preço mais elevado dos Estados Unidos. O jornal USA Today fez as contas para se chegar a esse valor incomportável para muitos nova-iorquinos que fumam: 4,35 dólares vão para o estado e 1,5 para a cidade. Eric Garner é uma pequena peça de um mercado negro onde os cigarros são vendidos à unidade depois de comparados em estados onde os preços são muito mais baixos.

"Não consigo respirar"
“Não consigo respirar” vai sendo mais do que a frase de Garner a pedir socorro. Já se tornou palavra de ordem. “Não estamos a viver numa sociedade pós-racial”, disse um Jon Stewart também perplexo e à procura de palavras a abrir o The Daily Show, um dos programas mais vistos na televisão americana, naquele dia 3. “Não consigo respirar” é a metáfora replicada em cartazes, palavras que tentavam fazer-se ouvir mais dos que os helicópteros que têm sobrevoado a baixa da cidade ou as sirenes de bombeiros e carros de patrulha, fazendo algumas detenções que as autoridades têm justificado como “preventivas de maiores desacatos”.

Quinta-feira, 4, era apenas o dia seguinte. No barco que sai para Staten Island, perdeu-se o rasto a Diane entre centenas de turistas que entram a cada 15 minutos, de olho na melhor posição para fotografar. Os passageiros frequentes destacam-se pela calma. Lêem, há quem faça um lanche ou simplesmente feche os olhos. Patricia, estudante de inglês, filha de emigrantes italianos. Também esteve na Ponte de Brooklyn com uns amigos na noite anterior. Repete: “sim, é sufoco”. Chamam-lhe também tensão. “Há melhor para definir o que estamos a sentir? Estou a estudar e não sei quando vou ter emprego. Isso é de brancos e negros. É um sufoco. Mas será que se fosse um branco o júri teria decidido assim? É o que muita gente pergunta não é?” Ao contrário de Diane, Patricia é branca. Tem o New York Times a correr no iPad. Não é difícil encontrar os locais naquele barco. Como Diane que seguia para o ferry, Patricia, lá dentro, destaca-se entre a maioria dos passageiros que atravessa a baia de Nova Iorque, entre Manhattan e Staten Island. Não tem uma câmara apontada à paisagem. Vai sentada no interior do barco, habituada a quem se deslumbra com a vista mas que raro sai do ferry para conhecer a ilha a sudoeste de Nova Iorque. Pode-se sair e esperar pelo próximo sem por um pé fora da estação, sem curiosidade pelo sítio onde vivem cerca de meio milhão de pessoas, 75% das quais brancas, 10% negras, e os restantes, sobretudo, asiáticos, e onde vive a grande maioria dos 35 mil polícias de Nova Iorque.

Muitos desses polícias estão pelas ruas de Staten Island. Em carros patrulha, parados junto ao tribunal onde alguns jornalistas e muitos fotógrafos tentam testemunhos. Um grupo de pré-adolescentes mete conversa com dois. “De onde são?”, perguntam. Os policias têm traços asiáticos. Sorriem para os rapazes. “Somos daqui, e vocês?”. Andam por Bay Street, esperam pelos autocarros que os levam da escola, mesmo ali, no cruzamento mais movimentado, junto à estação dos barcos, perto da linha de comboio. A mesma rua onde Eric Garner morreu. É uma rua longa. Do sítio onde estão os rapazes, não se vê a espécie de altares que tem sido local de romaria por esses dias. Velas, flores de plástico, gente que pára e outra que passa. Já não estão lá televisões. O dia está a escurecer. Não se diz muita coisa. Na noite anterior e na manhã desses dia, houve fotos, gente a falar. Mas há quem se interrogue, como Diane, se não será apenas folclore e depois tudo se esqueça.

No caminho de volta à estação há mais altares. Também em Bay Street, a 22 de Setembro houve um tiroteio, alguém morreu, como se lê numa tira de papel branco, escrita a caneta preta colada num muro de pedra. O nome já não se lê. Há flores de plástico numa jarra.

Sugerir correcção
Ler 25 comentários