Queremos a rádio das Ex Hex
Mary Timony já não tem a fúria contida que lhe ouvimos nos Helium, já não exprime a angústia do seu percurso a solo. Formou as Ex Hex e inventou um novo lugar. Rips é imaculadamente pop, declaradamente rock’n’roll.
Rips, o álbum da sua nova banda, as Ex Hex, qual colisão feliz entre a crueza dos Ramones, o brilho glam de Marc Bolan e as melodias das Go Go’s, chega para o provar. Doze canções imaculadamente pop, declaradamente rock’n’roll, perfeitas para um universo FM que já não existe (ou que só sonhámos ter existido). “As canções que compus nasceram em parte de pensar na música que ouvia na rádio quanto tinha 12, 13 anos. Blondie, Cheap Trick, mesmo Slade, Sweet, T. Rex e todas essas bandas glam”, explica Mary Timony desde a sua cidade, Washington. “Cheguei a um ponto em que já não tenho nada a provar e já não estou zangada com o mundo”.
Foi na capital americana que Mary Timony se descobriu. Ou melhor, estava num concerto dos Fugazi, lendas do punk e hardcore americano (“acho que era o segundo concerto deles”, recorda),assistindo entre o fascínio e o susto àquele tumulto de ruído eléctrico, de palavras de ordem gritadas e corpos suados chocando entre si, que definiu o seu projecto de vida. Pegar numa guitarra, fazer canções, juntar-se a uma banda. Agitar.
O prodígio adolescente da guitarra (assim a considerava o seu professor na Duke Ellington School of The Arts) saíria da cidade para estudar Literatura Inglesa na Universidade de Boston. Aí se juntou aos Hellium, aí terminou a banda em 1998, incapaz de lidar com a pressão e as exigências de um contracto com uma editora multinacional. Em 2005,regressou a casa.
As Ex Hex, banda baptizada com o título do seu terceiro álbum em nome próprio, são verdadeiras filhas de Washington. Da Washington de Mary Timony, que não é exactamente a que mitificamos enquanto pensamos na sua vibrante cena punk dos anos 1980 e 1990, a dos Fugazi, Bad Brains, Minor Threat e da editora Dischord. “Foi por causa dessa música que comecei a tocar e certamente que não o faria se não tivesse estado aqui nessa altura, mas, honestamente, a cidade é muito pequena e todas as pessoas que estiveram envolvidas na cena dos anos 1990 foram embora. [Washington] D.C. é uma cidade estranha. Não é muito barata, portanto não é um bom sítio para músicos ou artistas. E é uma cidade governamental, conservadora, que atrai funcionários do Governo e escritórios de advogados”.
Mary Timony pertence ao pequeno núcleo de resistentes. “A maioria dos músicos que conheço nasceram cá e só continuam na cidade porque têm aqui a família”. É o caso da baterista Laura Harris e da baixista Betsy Wright. “Por ter crescido aqui, já as conheço há muito. Toda a gente da comunidade musical de Washington D.C. se conhece. Sempre gostei de as ver tocar e estou mesmo a gostar do que fazemos. Fez muito sentido que nos juntássemos”.
As Wild Flag, que editaram um álbum homónimo em 2011, duraram pouco mais de um ano. A partir daí, não mais ouvimos falar de Mary Timony. E três anos são muito tempo para alguém que diz estar “sempre ansiosa por tocar música, sempre a trabalhar em qualquer coisa”. Cá longe, não a víamos e não a ouvíamos. Porém, algures numa sala de ensaio em Washington, “uma garagem de cimento, sem casa de banho e sem aquecimento, um sítio meio insano”, começava a nascer algo novo no seu percurso.
Primeiro um ano de jams e de trabalho no ofício de fazer canções – “fico sempre muito entusiasmada quando chego a qualquer coisa de que gosto, mas isso é muito difícil de conseguir, exige passar por cem ideias más até arranjar uma boa… ou só razoável”. Depois, outro tanto a aprimorá-las no estúdio caseiro de Timony. Por fim, a gravação. Eis-nos então perante Grips.
Ouvimo-lo e é como que um sonho adolescente inventado por quem já deixou há muito a adolescência (Timony tem 44 anos). É uma fantasia totalmente assumida enquanto tal. São as canções. Há os coros atirados ao ar com displicência (Waterfall é bom exemplo), o boogie punk de Beast, qual provocação na pista de dança, ou o espírito das Shangri-Las transportado para uma banda rock orgulhosa do lado bom dos The Knack (How you got that girl , música e letra, explica tudo). E há mais que isso.
O riff de Vicious, de Lou Reed, parafraseado em Hot and cold, ou aquela sequência inicial de Everywhere que nos leva a trautear mentalmente os versos iniciais da My generation, dos The Who. “Estou aberta a esse tipo de citações pela primeira vez. Antes, elas deixavam-me horrorizada, mas talvez seja mais influenciada neste momento pelo contexto geral da música. Há tanta música que adoro. Porque não tentar fazer canções que encaixem nela?”
Talvez seja do tempo, realmente. Ou da conjugação de tempos. Aquele em que nos encontramos agora. Esse “em que há dez vezes mais bandas e dez vezes mais géneros de rock que nos anos 1990, em que, para dizer a verdade, toda a gente estava a fazer música semelhante”, considera Mary Timony. Esse em que “o rock já não é música de rebeldia” – “acho que pertenço ao último vestígio disso”, complementa entre risos. Esse, continuemos, que encontra Timony muito longe das fúrias e neuroses de outrora. “Usamos toda a nossa angústia nos vintes. Nessa idade, estamos constantemente chocados com o mundo, com as desigualdades e injustiças, e é difícil fazer sentido dele. Nos trintas, começamos a desvendá-lo, a perceber melhor como funciona”. Ela está nos quarentas. “Já não quero expressar essas angústias, porque não é isso que sou”.
Os Ex Hex são, portanto, trabalho de uma música serenada. Alguém que mergulhou na memória para daí extrair a banda-sonora para uma nova juventude. Não há angústia. Mas há certeza e prazer contagiante no gesto criativo – “trabalhámos muito até que as canções parecessem não nos terem dado trabalho nenhum”. Há, essencialmente, doze canções irresistíveis pela sua leveza pop e inspiradoras pela bem-disposta paixão que delas irradia. É muito feliz, em todos os sentidos, este tempo que Mary Timony descobriu nos Ex Hex.