Teatro todos os dias, para todos os gostos
O último fim-de-semana do Temporada Alta, em Girona, será em cheio, com peças do encenador lituano Korsunovas, do dramaturgo de origem libanesa Wajdi Mouawad e do grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol. A uni-las, a vontade de conhecer e documentar o nosso tempo.
Korsunas, cujo Romeu e Julieta pôde ser visto no Festival de Almada em 2007, promete um versão crua de A Gaivota, sem grandes artifícios cénicos, nem figurinos pomposos nem cenários sumptuosos. “Representar Tchekhov é fazer uma autópsia da nossa época em que, em vez do bisturi, usamos a entoação”, escreve o encenador.
“Para um actor, aventurar-se a interpretar um papel das obras de Tchekhov é de certa maneira similar a quem se mete a fazer o juramento de Hipócrates, porque cada momento da dramaturgia do autor é uma metástase do destino.”
Com um elenco premiado (Nele Savicenko como Arkadina, Martynas Nedzinskas como Treplev, e Rasa Samuolyte como Masha), a peça estreia em território espanhol junto a um público familiarizado com outras produções do encenador, mas que talvez se surpreenda com a versão laboratorial desta montagem, que se apresenta como uma sessão de análise da peça partilhada com os espectadores. A montagem vem bem recomendada: Maria Shevtsova, nas páginas da Critical Stages, descreve a direcção dos actores, que actuam como se não houvesse actuação, como um grande feito.
Wajdi Mouawad é o autor de Incêndios, recentemente editada nos Livrinhos de Teatro, dos Artistas Unidos — uma das peças de maior sucesso, um pouco por todo o mundo, dos últimos anos, mas ainda por ser feita em Portugal. Incêndios faz parte de uma tetralogia, O Sangue das Promessas, de que este Céus é o último tomo. Num lugar secreto, cinco pessoas dedicam-se a espiar conversas telefónicas, para evitar um ataque terrorista. Quando um deles se suicida, o mundo pessoal das personagens entra em crise. Enquanto nas peças anteriores o autor se debruçava sobre o passado, este texto trata de um futuro que, entretanto, está cada vez mais próximo. Oriol Broggi criou uma versão onde se cruzam recursos audiovisuais e personagens de carne e osso.
A história oculta do partido oficial do México, o célebre Partido Revolucionário Institucional, é o foco do novo espectáculo das Lagartijas Tiradas al Sol, grupo que tem corrido toda a Europa, mas está ainda por ser visto em Portugal. Derreterei com um fósforo a neve de um vulcão, é uma “construção pessoal” do período de governação do PRI, entre 1929 e 2000, iniciado por ocasião das eleições de 2012, quando se deu o regresso daquela força ao poder. Com recurso a depoimentos e documentos, os membros do Lagartijas vão tecendo a sua memória de um tempo que não viveram, na tentativa de que os piores aspectos dessa época não se repitam.
Foram dois meses de teatro, música e dança, quase todos os dias, com picos de actividade ao fim de semana. Além da Semana de Criação Contemporânea, o festival teve outros ciclos, entre os quais a Semana da Dramaturgia, de 5 a 9 de Novembro, dedicada a peças e autores catalães e à adaptação de clássicos; a Conexão Iberoamérica, no qual se incluíram todos os espectáculos espalhados ao longo do festival com origem na América Latina; um ciclo de cinema e outro de teatro para todas as idades.
As salas de Girona (c. 90 mil habitantes) enchem com público da cidade e da região, incluindo espectadores vindos de Barcelona, a cem quilómetros, em especial para os espectáculos internacionais. (Dulce Pontes actuou logo na segunda semana. Em Outubro, viu-se o Macbeth dirigido por Brett Bailey, que se apresentou em Lisboa, no Maria Matos; The Suit, de Peter Brook; e Holzfällen, de Thomas Bernhard, encenado por Krystian Lupa. Em Novembro, King Size, de Christoph Marthalar; Coup Fatal, de Alain Platel.) No último fim-de-semana, vê-se o mundo a várias escalas. É para isto que se faz um festival de teatro.
O PÚBLICO esteve em Girona a convite do Temporada Alta