Escolas que questionam o sistema e dão a cada aluno o seu tempo
Há escolas que não têm manuais, nem aulas expositivas. Em algumas são os alunos que escolhem o que estudar e quando querem ser avaliados. Noutras, as notas não contam mais do que aprender a conhecer-se e a ser feliz.
N’Os Aprendizes, em Cascais, além do edifício onde decorrem as aulas, há uma casa, o Reino dos Sentidos, dedicada sobretudo à arte-terapia: não é só para meninos com necessidades educativas especiais, qualquer criança pode ir lá e tentar ultrapassar uma dificuldade através da pintura, música, neuroterapia, entre outras hipóteses.
Estes colégios são privados, mas a Escola da Ponte, Santo Tirso, do pré-escolar ao 3.º ciclo, é pública. Sem aulas expositivas, são os alunos que escolhem as matérias e quando querem ser avaliados.
São três exemplos, entre outros que não encaixam no sistema convencional. Não se vangloriam de serem os melhores nos rankings, mas garantem que as crianças aprendem e trabalham a criatividade, o espírito crítico, a cidadania, a liberdade, a responsabilidade.
“Não acreditamos na avaliação quantitativa, mas qualitativa. O professor olha para cada criança e vê se brinca, se come, se resolve um problema na sala, lá fora, se tem dificuldade a Português, a Matemática. Não há um melhor do que outro”, diz Rita Dacosta, directora da Casa da Floresta, colégio até ao 1.º ciclo que segue a pedagogia Waldorf.
Além desta pedagogia, Os Aprendizes cruza o método High Scope e o Movimento Escola Moderna. À fusão chamaram “Pedagogia do Amor”: “Está na moda falar em sucesso, não em amor. Mas preparar os miúdos para a vida não é só prepará-los tecnicamente. Ser bem sucedido profissionalmente é ser feliz, realizado, trabalhar em algo produtivo, é cada um alcançar o máximo do seu potencial”, diz Sofia Borges, directora deste colégio até ao 2.º ciclo.
A gestora da Escola da Ponte, Eugénia Tavares, frisa que naquele estabelecimento – que funde várias correntes, mas tem forte influência do Movimento Escola Moderna – “o aluno tem uma atitude mais activa na procura do conhecimento”. A coordenadora de projecto, Ana Moreira, acrescenta: “Nas aulas convencionais, um assunto é dado e quem apanhou apanhou.”
Sérgio Niza, um dos fundadores do Movimento Escola Moderna e que já fez parte do Conselho Nacional de Educação (CNE), diz que o “método simultâneo” da maioria das escolas “resume-se a ensinar a muitos como se fossem um só”: “A monstruosidade disto é não haver respeito por cada um.”
Ludovina Silva é presidente da Associação de Pais da Escola da Ponte, tem lá dois filhos: “Quando saem da Ponte, são mais interventivos, questionam mais.” Nesta escola, há comissões de ajuda, uma assembleia: os alunos identificam os problemas da escola, debruçam-se sobre as soluções.
Admite que se sentiu “insegura” quando, no fim do 1.º ano, a filha não sabia ler: “Mas ela teve de lidar com a timidez e, na Ponte, trabalharam isso. É uma escola que respeita o tempo de cada aluno. Hoje é excelente aluna.”
Efeito “perverso”
Rita DaCosta assume que a Casa da Floresta é avessa à lógica dos melhores e piores: “Quando uma criança tem um "não satisfaz", acha que é ela que não satisfaz. A partir daqui, é muito difícil trabalhar a criatividade e a auto-estima.”
Para o docente da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e do Centro de Investigação e Intervenção Educativas, Rui Trindade, há um “efeito educativo perverso da valorização de um tipo de competitividade que poderá ser adequada para o desporto de alta competição”, mas, na escola, é “um obstáculo educativo” – é uma lógica em que o sucesso não é em função das “aprendizagens”, mas das notas.
No ano passado, a Casa da Floresta não teve exames nacionais. Mas, segundo o ranking do PÚBLICO, que inclui as notas dos alunos internos na 1.ª fase dos exames, n’Os Aprendizes, a média do 4.º foi 2,75 e, na Ponte, 3,67 – a média nacional foi 2,8. Ainda na Ponte, no 6.º foi 3, acima dos 2,71 nacionais e no 9.º foi 2,5, a mesma do país.
Rui Trindade ressalva que “bons resultados nos exames não significam, obrigatoriamente”, alunos “mais inteligentes, cultos e atentos aos outros e ao mundo”. E Sérgio Niza defende mesmo que há “um desvio de sentido” do Governo que, “sob a capa de um suposto rigor, é de um populismo desenfreado”: “Não compreende nada do que é essencial na escola, compreende tudo no plano empresarial. Joga com os alunos como se fossem mercadorias. Os exames sucessivos fazem fugir a escola da cultura e põem-na a repetir, a treinar, como se fosse treino desportivo”, faz notar. E frisa que esse caminho forma pessoas “acéfalas e repetitivas”, em vez de “criativas, críticas, imaginativas”.
Rui Trindade levanta outra questão: como se valoriza o erro enquanto forma de aprendizagem? Defende que a “qualidade da formação académica e técnica das pessoas” depende do modo como “se gere o erro como um desafio pedagógico tão inevitável quanto expectável”. E como se promove o autoconhecimento e a criatividade.
Para este investigador, “o problema” da escola convencional não é só “marginalizar” as disciplinas artísticas, mas “não aproveitar” as potencialidades do Português ou da Matemática. Incluir Os Maias ou as equações de 2.º grau nos programas não garante que os alunos cresçam de forma “significativa”: “É a relação que estabelecem com Os Maias ou as equações e o modo como tal relação é apoiada e gerida que pode constituir-se como oportunidade.”
Já o professor coordenador principal da Escola Superior de Santarém e membro do CNE, Ramiro Marques, é a favor dos exames no fim de cada ciclo: “Criam uma pressão adicional no desempenho de professores e escolas. Como as classificações podem ser comparadas entre escolas, permitem um sistema mais competitivo e permitem aos pais um conhecimento das escolas.”
Ramiro Marques considera que a pedagogia Waldorf ou o Movimento Escola Moderna são propostas pedagógicas que podem ter “resultados favoráveis”. “Mas necessitam de uma militância muito grande dos professores. Se aplicadas a escolas sem liderança muito forte, não atingem os resultados esperados. Não são propostas facilmente generalizáveis a todo o país”, nota, ressalvando ser “a favor da diversidade metodológica”, desde que haja metas curriculares nacionais.
Trepar às árvores
Na Casa da Floresta, letras e números andam lado a lado com ecologia e criação. Não há bonecos que não sejam feitos pelas crianças, professores ou artesãos. Os miúdos não levam telemóveis nem ipads. Nas aulas, “estão três semanas a trabalhar Português, três semanas a trabalhar Matemática, sempre com a componente artística presente”. E vão muito lá para fora: “Temos uma horta de 600 metros quadrados, para onde eles vão com galochas, enxadas, ancinhos. Fazem actividades de Matemática e Português no meio das árvores, da natureza.” Têm Música, Inglês, Costura, Capoeira, Carpintaria. Não têm manuais nem trabalhos de casa.
Na pedagogia Waldorf, diz Rita DaCosta, valoriza-se a época do ano: “O equinócio de Outono, o solstício de Inverno, o equinócio da Primavera, o solstício de Verão. Falamos sobre as colheitas nos problemas de Matemática. Toda a actividade vai beber a estes ritmos da terra.”
Estarão as crianças demasiado protegidas, afastadas das exigências de uma sociedade cada vez mais competitiva? Pelo contrário, diz a directora, para quem esta dimensão onírica é “uma semente” que os alunos transportarão pela vida fora e que os ajudará a enfrentar as adversidades de outra forma.
Também n’Os Aprendizes foram buscar à pedagogia Waldorf a “educação pela arte” e o “desenvolvimento espiritual”. Do método High Scope retiraram a “aprendizagem activa”. “É aprender agindo sobre o mundo que me rodeia, com workshops, experiências”, diz Sofia Borges. Quando no 3.º ano se deu a Rosa dos Ventos, os meninos foram para rua e “perderam-se”: “Claro que o professor sabia onde estavam, mas era para perceberem onde era o Norte, o Sul, o Este e o Oeste.” Já ao Movimento Escola Moderna foram buscar a vertente comunitária que faz, por exemplo, com que as crianças participem na definição das regras.
Nesta escola também se respeita a “individualidade de cada um”. Não estão à espera que aprendam todos ao mesmo tempo. E defende-se que não é só na sala de aula que se incentiva a aprendizagem. “Uma criança que trepa às árvores está a desenvolver-se, a ultrapassar conflitos. Se não consegue trepar, vai ter de vencer uma frustração. É tão importante como o problema de Matemática. E, se calhar, com essa aprendizagem da árvore, vai olhar para o problema de Matemática de outra forma”, diz Sofia Borges.
Ali, antes das aulas, os miúdos fazem o brain gym, “pequenos exercícios físicos que predispõem o cérebro para as aprendizagens”. Depois, sentam-se em mesas redondas e podem ir circulando pelas actividades propostas pelo docente. “Há regras discutidas com as crianças, mas os adultos são os orientadores. Há um horário, uma estrutura, mas dentro dela há liberdade”, explica a directora.
Nesta escola, entre outras disciplinas, têm Filosofia, Expressão Plástica, Expressão Dramática, Música, Educação Física, Ioga, Meditação. À sexta-feira, é dia de Trabalhos Manuais, Horta e Culinária, de visitar lares de idosos. Manuais, só a História e Inglês. São os alunos que vão “construindo o conhecimento”: “No fim do ano têm um manual feito por eles. Os manuais [instituídos] afunilam a aprendizagem. Todas as crianças têm de ler os mesmos textos? Aqui vão à biblioteca e escolhem. O que me interessa é que desenvolvam gosto pela leitura”, nota Sofia Borges.
Mas os modelos alternativos funcionam do ponto de vista da aprendizagem das matérias? É evidente, diz Rui Trindade, que são “projectos onde o nível de risco pedagógico é maior”, mas “é inevitável que assim seja, tendo em conta o espaço de diálogo, de descoberta e de interpelação” que os caracteriza.
Ressalvando que só fala do que conhece – Movimento da Escola Moderna, Escola da Ponte, projecto Osmope e colégio Tangerina, no Porto –, Rui Trindade diz que são espaços que geram “aprendizagens significativas” e contribuem para que os alunos se tornem, através do currículo, “mais inteligentes, cultos e humanamente mais capazes”.
“Raios de luz”
Sendo um dos casos mais conhecidos, a Escola da Ponte recebe inúmeros visitantes. São os alunos que fazem as visitas. Rafaela Oliveira, 16 anos, no 9.º, já esteve noutra escola, prefere a Ponte: “Quando cheguei, era a aluna mais envergonhada, era impossível estar a falar com uma visita. Foram os professores, principalmente o meu tutor, que me incentivaram a fazer estas visitas. Agora, de vez em quando, até recebo elogios.”
Rafaela Oliveira e David Braga, 10 anos, 5.º ano, vão explicando que a escola funciona em três níveis de projecto: iniciação, consolidação e aprofundamento. Os miúdos vão passando de um nível para o outro, mas não todos ao mesmo tempo. Não há testes; notas, só no 3.º período.
Nas salas, sentam-se em mesas redondas, em grupos de várias idades. Estudam as matérias que definiram, no chamado "plano do dia" e "da quinzena", e orientadores e colegas ajudam. Para a professora Alexandra Ferreira, coordenadora do núcleo de aprofundamento, o maior desafio é ser abordada por alunos de anos diferentes: “Há um tipo de ajuda para um, outro para outro.”
Ana Moreira defende que o ensino convencional assenta numa “perspectiva fechada” sobre a educação: “Mas há pequenos raios de luz como a Ponte. E uma discussão grande na comunidade académica, em várias partes do mundo, sobre o rumo da educação e vontade de o mudar.”
Para Sérgio Niza, é “por preguiça mental e medo” que os governantes em Portugal não avançam “para novas formas de encarar a escola”, que sai “empobrecida”, ao tentar satisfazer “a eficácia da sociedade de mercado”. Ao contrário da “acelerada lógica do lucro”, diz, “o tempo de nos formarmos como cidadãos, aprendermos, sermos pessoas que amam a cultura é longo”. No fundo, não se pode confundir ortografia com escrita: “A ortografia é uma coisa mínima, ridícula, em relação à escrita. É a escrita, como discurso crítico, que pode mudar as pessoas e o mundo.”