Um ano depois da revolução da Maidan, o pior ainda pode estar para vir
Foi há um ano que a Praça da Independência em Kiev começou a servir de palco às primeiras manifestações anti-governamentais.
A 21 de Novembro de 2013, o então Presidente ucraniano, Viktor Ianukovich, dava um passo atrás e anunciava que não iria assinar o Acordo de Parceria com a União Europeia na cimeira de Vilnius marcada para dali a uma semana. Escrevia no dia seguinte a revista The Economist que “este foi o [ponto] mais próximo que a Ucrânia alguma vez esteve de atravessar a fronteira entre a Rússia e o Ocidente”. Kiev tinha preferido continuar “o diálogo activo com a Rússia”, segundo a versão oficial do governo.
Desapontados, dezenas de jovens saíram às ruas da capital para mostrarem o seu descontentamento e acamparam na Praça da Independência, palco de muitas outras manifestações populares – a última das quais a Revolução Laranja, nove anos antes. Nada de novo, portanto, e nada que preocupasse muito Ianukovich.
Em vez de perderem o fulgor com o passar do tempo – e com o Inverno rigoroso do Leste europeu – os protestos continuaram a crescer. A Maidan (“praça” em ucraniano) tornou-se moradia de dezenas de milhares de pessoas determinadas a ali permanecer.
No início de Dezembro, a polícia especial de intervenção, as Berkut (águias douradas), foi enviada durante a madrugada para dispersar violentamente os protestos, utilizando balas de borracha e gás lacrimogénio. A violência deu força e, acima de tudo, uma sensação de superioridade moral aos manifestantes que continuaram na Maidan e passaram a contar com o apoio de outros sectores da sociedade. A aprovação de leis altamente repressoras, já no início de 2014, e que incluíam proibições de ajuntamentos públicos ou interdições à actividade de organizações com apoio estrangeiro, veio alterar o tom dos protestos – já não se tratava apenas do acordo com a UE, pedia-se a demissão de Ianukovich e uma refundação democrática.
“A intensidade dos eventos em torno da Euromaidan forjava os inícios de uma nova nação cívica e política”, escrevia em Fevereiro Nadia Diuk, vice-presidente do National Endownment for Democracy, uma fundação norte-americana para o desenvolvimento democrático.
Ao fim de meses de protestos, durante os quais morreram centenas de pessoas, o regime de Ianukovich acabaria mesmo por soçobrar. A Maidan “chumbou” um acordo assinado entre o Presidente e os líderes da oposição, com mediação internacional, e insistiu na sua destituição. A violência da repressão tinha levado a um ponto de não-retorno. “Nenhum dos lados conseguia controlar os actores locais, particularmente a Maidan, que tinha vida própria”, recorda ao PÚBLICO, Balázs Jarabik, do Programa Rússia e Eurásia do Instituto Carnegie. Ianukovich optou por fugir para a Rússia, deixando um vazio no poder. O “seu” Partido das Regiões foi extinto, o Parlamento passou a funcionar a meia casa e foi nomeado um governo interino, que contava com vários membros indicados de forma popular.
Para Alexander Motyl, especialista da Universidade de Rutgers em Newark, “a Euromaidan foi a última de uma longa série de rebeliões de ‘poder popular’ que levaram a mudanças de regime”. “Julgo que novas Euromaidan terão lugar em muitos outros Estados pós-soviéticos, incluindo a Rússia, o Cazaquistão, a Bielorrússia, nos próximos cinco, dez anos”, diz ao PÚBLICO.
Longe de ser o final, a queda de Ianukovich mais não foi do que o início de uma nova crise na Ucrânia. Da Praça da Independência, a acção passou a ser travada primeiro na Crimeia – anexada em Março pela Rússia, depois da tomada por comandos armados dos principais edifícios regionais – e a seguir no Donbass, no Leste do país, onde até hoje o Exército ucraniano combate milícias pró-russas que ocupam largas faixas de território, num conflito que já vitimou 4317 pessoas, de acordo com a ONU.
O desenrolar dos acontecimentos num tão curto espaço de tempo apanhou todos os observadores de surpresa. “Esperava que a situação na Ucrânia ficasse turbulenta depois de uma decisão dessas [recusa da assinatura do acordo com a UE], mas não esperava que chegasse a ser tão dramática”, diz-nos Jarabik. Da mesma forma, Alexander Motyl afirma que “antecipava que houvesse protestos, mas não com a magnitude que vieram a assumir”.
Reconstruir um país
Um ano depois, a Maidan alcançou alguns dos seus objectivos primordiais, mas o clima de crise quase permanente torna praticamente impossível de implementar medidas consideradas cruciais. “Indubitavelmente houve uma transformação política e as forças pró-europeias e pró-reformistas saíram reforçadas nas suas posições após as eleições presidenciais e parlamentares”, nota Balázs Jarabik. O industrial Petro Poroshenko foi eleito Presidente a 25 de Maio com um mandato muito claro para colocar o país no rumo europeu, mas, acima de tudo, para pôr fim ao conflito no Leste. No mês passado, as eleições legislativas deram uma vitória esmagadora aos partidos pró-europeus, encarregados de formar um governo que cumpra a difícil missão de manter essa aproximação ao Ocidente sem alienar os interesses da população russófona do Leste – o “pecado original” cometido logo após a queda de Ianukovich e que ajudou a fomentar as insurreições que levaram à guerra.
Um dos aspectos mais alarmantes é a situação económica do país. Até ao fim do ano, o PIB deverá recuar 10%, o dobro daquilo que era projectado pelo Fundo Monetário Internacional em Abril. A moeda, o hrivnia, perdeu metade do valor desde o início do ano e o “cenário adverso” para que o FMI alertava há seis meses veio a revelar-se pior. Para além disso, o eterno problema da dependência do fornecimento de gás natural russo veio complicar ainda mais as finanças do país.
“A pior parte vem só agora, com o país a enfrentar desafios económicos e sociais tremendos, dado que está praticamente na bancarrota devido às más políticas económicas e fiscais do passado, e não apenas de Ianukovich”, explica Jarabik.
A luta contra a corrupção, endémica na Ucrânia (144.º lugar em 177 no ranking da Transparência Internacional), foi outra das bandeiras defendidas pela Maidan que está ameaçada. O Parlamento aprovou em Setembro uma lei de lustração, que pode implicar a remoção de cerca de um milhão de funcionários públicos envolvidos em esquemas de corrupção. Mas só depois de muito debate é que houve o consenso necessário entre os deputados da Rada Suprema – à saída de uma das sessões, um deputado foi atirado para um caixote de lixo por uma multidão, demonstrando o clima quente que ainda se vive em Kiev. Agora, a lei está ameaçada por um recurso interposto pelos juízes do Supremo Tribunal, que duvidam da constitucionalidade da medida.
E resta, ainda, o caminho até Bruxelas, cujas hipóteses de sucesso se afiguram altamente improváveis. “Não há uma hipótese realista de que a Ucrânia se torne membro da UE até 2020”, a meta avançada por Poroshenko, diz Jarabik. O próprio Acordo de Parceria foi apenas assinado de forma parcial, com a parte respeitante ao comércio livre adiada para 2016. “A UE no seu formato actual, e sem qualquer reforma, não será capaz de integrar a Ucrânia, especialmente na sua actual situação social, económica e política”, vaticina o especialista do Carnegie.
Hoje, o 21 de Novembro passa a ser denominado “Dia da Dignidade” na Ucrânia e serve para lembrar o espírito da Maidan. Um espírito que continua vivo, segundo Jarabik, “como uma ameaça de um potencial protesto social contra os ‘oligarcas’ e a elite dirigente a eles associados”.