Dar memória

Um livro de conversas para deambular pelas casas e pela cidade, entre a arquitectura e o cinema português

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Jorge Silva Melo, o autor deste Agosto, reclama que a cidade que lhe prometeram ainda não foi feita

Este livro foi editado e publicado para partilhar as conversas que decorreram no fim das projecções do ciclo de cinema O Lugar dos Ricos e dos Pobres e no Cinema e na Arquitectura em Portugal, organizado pelo arquitecto José Neves e realizado entre Outubro de 2007 e Março de 2008 na Cinemateca Portuguesa. Houve na sua feitura a intenção de ultrapassar as circunstâncias do debate, de alargar a sua memória. Só pela generosidade, a iniciativa seria louvável, mas assim que o leitor “entra” nas conversas dá-se conta da importância do objecto. A vibração intelectual da palavra dita, o conhecimento transmitido sobre a história do cinema português e a história da arquitectura portuguesa, a riqueza das rememorações e dos diálogos tornam-no valioso para todos os que ainda têm o mínimo de curiosidade pela vida das artes em Portugal. Não se trata de uma obra académica, com pretensões científicas, mas, ao dar a palavra a cineastas, arquitectos e críticos, compõe uma série de falas e de emoções, das quais não se ausenta o pensamento. O trabalho notável de transcrição, com uma edição cuidada atenta ao ritmo das conversas e às vozes autorais dos participantes, assegura essa presença.

Em busca dos lugares literais dos ricos e dos pobres no cinema e na arquitectura, o ciclo (sem pretender ser exaustivo) incluiu 12 filmes, entre os quais Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, Juventude em Marcha (2006), de Pedro Costa, Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, Agosto (1988), de Jorge Silva Melo, ou Recordações da Casa Amarela (1989), de João César Monteiro. No fim de cada sessão, um cineasta e um arquitecto comentaram as imagens, com a moderação apaixonada de outros intervenientes (José Neves, também coordenador do Núcleo de Cinema da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, João Bénard da Costa, bem como produtores, actores e actrizes) e a participação atenta dos espectadores (sobretudo, estudantes de arquitectura). Não se tratou de conversas a dois ou a três, mas de debates colectivos cujos temas se foram traçando ao longo de cada sessão. A maioria das conversas abre-se com os filmes — e é muito comovente testemunhar “o acordar” dos participantes após uma revisitação ou um visionamento inédito — para deambular pelas casas e pela cidade, entre a arquitectura e o cinema português. Contam-se as peripécias que envolveram a realização de Brandos Costumes (1975), de Alberto Seixas Santos, evoca-se o professor de cinema António Reis, elogia-se o respeito que João César Monteiro tinha, nos seus filmes, pela realidade das pessoas. Os cineastas falam das suas obras e dos lugares (a digressão de Fernando Lopes sobre Belarmino e Lisboa é muito bonita) ou de outros cineastas (Jorge Silva Melo quando revela quem foram os seus antigos assistentes), mas o desapontamento manifesta-se, enleado em dúvidas. O arquitecto Alexandre Alves Costa receia que a cidade possa deixar de ser cidade, secundado, noutra conversa, por Nuno Teotónio Pereira, enquanto Jorge Silva Melo desabafa que a cidade que lhe prometeram quando tinha dez anos “não foi feita”. Sobre o cinema, pesam as ameaças da formatação ou, sugere José Neves, o desaparecimento de qualquer espécie de representação justa do espaço onde as acções possam ter lugar, sejam dos ricos sejam dos pobres. Os depoimentos mais interessantes sobre as relações entre o cinema e a arquitectura são proferidos por três arquitectos e um cineasta. Nuno Teotónio Pereira e António Belém Lima lembram que as duas artes são artes do espaço, do movimento (António Belém Lima intima a arquitectura a estar atenta às sombras, às cores, à acústica do cinema) e José Neves vê nos choques entre interior/exterior e privado/público de Recordações da Casa Amarela os choques da vida que a arquitectura organiza. De todas as intervenções, a de João Mário Grilo é a mais crítica em relação à arquitectura. Esta não é, diz, consequência das coisas mas gera, induz coisas, comportamentos. Foi o urbanismo, afirma ainda, um dos motores dos campos de concentração. É verdade que, mais à frente, o autor de Longe da Vista (um dos filme incluídos no ciclo) acrescentará que “o cinema e a arquitectura cumprem o seu papel na programação social das pessoas”, mas a “provocação” já não pode ser desfeita.

O Lugar dos Ricos e dos Pobres no Cinema e na Arquitectura em Portugal

documenta horas de aprendizagem e conhecimento mútuos, por parte de arquitectos e cineastas que sabem que não vivem no melhor dos mundos. Mas, como diz José Neves, também sabem que a história não está contada e acabada e que a cidade ainda é um espaço de promessas. Como foi a Lisboa de

Belarmino

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