Acusações de violação ameaçam destituir Bill Cosby do papel de "pai da América"
Quinze mulheres reiteram que o patriarca de The Cosby Show as drogou e violou nas décadas de 1960, 70 e 80. A indústria já começou a distanciar-se de um dos mais importantes entertainers negros.
Bill Cosby, de 77 anos, está a ser alvo de uma série de acusações de violação pela segunda vez na sua longa carreira – em 2005 surgiram os primeiros relatos, pela voz da funcionária universitária Andrea Constand, que deram origem a uma investigação policial e ao surgimento de mais alegadas vítimas de violação por parte do actor. A advogada Tamara Green e a aspirante a actriz Barbara Bowman estavam entre elas. Constand chegou a acordo para resolver o seu processo e outras 13 mulheres citadas como testemunhas não chegam a depor. Durante todo o processo, os advogados de Cosby negaram as alegações e o comediante nunca foi formalmente acusado de quaisquer crimes sexuais.
Barbara Bowman e Tamara Green reiteraram as suas histórias em Fevereiro deste ano na Newsweek e a defesa do comediante voltou a negar e a minorar a importância das mesmas, lembrando que estas “eram nada há dez anos e ainda são nada”. Mas, há um mês, o comediante norte-americano Hannibal Buress dedicou parte do seu número de stand-up às acusações de violação em torno de Cosby e um vídeo do sketch tornou-se viral. É então que Barbara Bowman escreve um texto de opinião no Washington Post em que detalha as circunstâncias do seu alegado ataque – e sublinha que só quando um homem falou sobre o assunto é que ele teve algum eco.
Depois, a antiga modelo Janice Dickinson disse pela primeira vez, na terça-feira, ao programa Entertainment Tonight, que também fora drogada e violada por Bill Cosby – a presença de medicamentos é uma constante nas histórias das mulheres que o acusam e que remetem para alegados acontecimentos ocorridos a partir de 1969. Os advogados do comediante disseram que a história de Dickinson é “uma mentira fabricada” e enviaram uma carta à imprensa avisando os jornalistas que quem acompanha esta história “avança por sua conta e risco”. E foi então que, quando a 15.ª mulher acusou Bill Cosby de violação, a indústria começou a tentar dissociar-se da polémica.
Na terça-feira, o serviço de streaming Netflix adiou um especial de comédia stand up de Cosby agendado para dia 28. Na quarta-feira, a cadeia norte-americana NBC cancelou o seu “projecto Cosby”, que estava ainda em fase de desenvolvimento. As repetições da série que o tornou mundialmente conhecido, The Cosby Show, também foram canceladas no canal de cabo americano TV Land e dois talk shows já não o querem como convidado – o de David Letterman e o da actriz Queen Latifah. Ainda assim, segundo a Reuters, o comediante manteve agendado para sexta-feira um espectáculo já esgotado na Florida. A rádio pública americana NPR questiona Cosby sobre os casos e o comediante responde com silêncio, tendo depois o seu advogado comunicado que o comediante “não dignificará estas alegações com qualquer resposta”.
Entretanto, uma tentativa de campanha online em torno de Cosby foi contaminada pelo caso no dia 10. A equipa do septuagenário lançou um gerador de memes (uma imagem associada a um texto curto que tende a tornar-se viral nas redes sociais) que se tornaram rapidamente num dilúvio de mensagens sobre as acusações. Uma das poucas vozes a sair em sua defesa foi a da também comediante Whoopi Goldberg, que no seu programa The View disse ter "muitas perguntas" sobre as alegações contra ele, entre elas sobre porque não recorreu Bowman à polícia após os alegados acontecimentos.
Bill Cosby é casado com Camille Cosby há 50 anos e grande parte da sua carreira foi construída em torno de um apelo familiar, dos seus livros sobre parentalidade às suas participações na Rua Sésamo, mas sobretudo pela série que o tornou uma figura essencial dos anos 1980 americanos. Ele era um TV dad.
Por isso mesmo, agora que a Internet e as redes sociais exponenciaram o alcance das acusações que o rodeiam, proclama-se já que “não há fuga aos estragos para o seu legado”, como escreveu Brian Lowry, editor e crítico de TV da Variety. Isso ou “uma carreira de décadas desmorona-se”, como titulou o Washington Post. Numa altura em que a sua biografia está nas bancas (sem mençãos acusações) e em que passam 30 anos sobre a sua série-chave e se cumprem os 50 anos de carreira de Cosby.
The Cosby Show (1984-92), que passou na televisão portuguesa, centrava-se numa família negra encabeçada pelo comediante Bill Cosby, que interpretava o patriarca Cliff Huxtable. Ao longo de oito temporadas, foi um obstetra casado com uma advogada e com cinco filhos que navegava por uma vida de classe média-alta de Brooklyn. A série foi responsável não só por um dos maiores sucessos da década de 1980, mas também por abrir portas para mais programas com elencos maioritariamente afro-americanos (que, ainda assim, não originaram tanta produção e eco quanto inicialmente se pensou). Ele era um TV dad, mas também “um avatar do progresso afro-americano”, como o descreveu esta semana o Washington Post.
Cosby, um comediante de stand-up premiado e autor do cartoon Fat Albert and the Cosby kids, tornou-se a versão afável do Archie Bunker dos baby boomers – era a série preferida, dizem as audiências, da geração nascida depois da II Guerra Mundial, e um patriarca com alguns paralelos com a personagem da série da década de 1970 Uma família às direitas. Seis Emmy, dois Globos de Ouro, três prémios da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), e “talvez o programa mais significativo socialmente dos anos 1980” segundo a Baby Boomer Encyclopedia de Martin Gitlin. Antes de The Cosby Show “nunca houve um programa que tenha tido uma influência mais profunda na forma como a América negra se vê, e na forma como a América branca nos vê”, defendeu em 1992, após o final da série, o argumentista Bobby Crawford, num artigo de opinião no Los Angeles Times.
Caso originem um processo judicial, muitas destas acusações já prescreveram mas em alguns casos, dizem os peritos ouvidos pelo Los Angeles Times e pelo New York Times, podem ser julgadas. Entretanto, no tribunal da opinião pública da era Twitter, o silêncio de Bill Cosby sobre o assunto pode tornar-se ensurdecedor, argumenta Brian Lowry. Para Cosby “pode não haver fuga da nuvem com que esta série de acontecimentos em crescendo ensombrou o seu legado”, acredita o crítico da Variety.