Os pobres de Lisboa ficaram mais pobres nos últimos três anos
Projecto do Observatório de Luta Contra a Pobreza começou em 2011. Prevê que as mesmas pessoas sejam acompanhadas até 2020. Na segunda leva de entrevistas, uma conclusão: as condições de vida agravaram-se.
Regista-se “um agravamento da situação de vulnerabilidade em todos os perfis estudados, fruto em larga medida da ausência de respostas às necessidades mais básicas” — rendimento, habitação e saúde, conclui a segunda edição do “Barómetro de Pessoas que se Encontram em Situação Vulnerável”, feito pelo Dinâmia-CET — Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, em parceria com o Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa. Será apresentado nesta segunda-feira.
No relatório, a que o PÚBLICO teve acesso, lê-se: “As conclusões são evidentes. No período considerado agravaram-se as condições de vida de uma parte substancial dos entrevistados. Nas situações analisadas, 17 (em 57) mantêm a sua situação de pobreza de 2011, mas para 30 a situação de fragilização em que se encontravam agravou-se.” São sobretudo os que dependem das políticas sociais “os mais penalizados”. A saber: os incapacitados e os idosos.
Há ainda dez pessoas que viram a sua situação melhorar. Mas destas, oito continuam a ser consideradas pobres.
Entre os entrevistados, os grupos dominantes são: trabalhadores pobres (17), como Carolina, de 44 anos; idosos “em situação de vulnerabilidade” (10), como Luísa, de 84 anos; desempregados (9), como Margarida, de 43; incapacitados por motivos de doença (10), como Dália, de 59.
Vivem essencialmente em duas zonas da cidade: Marvila/Santa Clara, constituída, sobretudo, por zonas de realojamento, onde existe uma pobreza persistente, que passa de geração em geração; e Santa Maria Maior/São Vicente, composta por núcleos históricos, onde muitas das pessoas não se consideram pobres — mas a pobreza existe, segundo os investigadores, ainda que mais “oscilante”.
O relatório conclui que o “recuo das políticas sociais” a que o país assistiu nos últimos anos fez-se sentir em força: 26 entrevistados relatam ter visto apoios como o Rendimento Social de Inserção (RSI), o Complemento Solidário para Idosos ou o subsídio de desemprego reduzir-se ou até acabar. Há ainda casos de pessoas que relatam ter visto diminuir também o apoio do Banco Alimentar da sua zona. “A ausência ou diminuição desses apoios é sentida de forma particularmente penosa pelas famílias que viviam/vivem no limiar da sobrevivência e cujos ajustes em termos de gestão doméstica muitas vezes são realizados através de cortes na alimentação.”
A saúde e a integração no mercado de trabalho aparecem, nos discursos destes indivíduos, como determinantes para uma alteração da sua situação entre 2011 e 2014. Para o bem e para o mal: arranjar trabalho foi aquilo que mais contribuiu para a melhoria da vida dos que dizem que esta melhorou, perder a saúde fez agravar a situação de outros.
Trabalhadores precários
A história do barómetro remonta a 2011, quando 74 pessoas foram escolhidas para integrar o projecto. O grupo foi constituído de modo a incluir diferentes “perfis de vulnerabilidade”. Objectivo: voltar aos mesmo painel de três em três anos e mantê-lo, pelo menos, até 2020. Mas apesar dos múltiplos esforços dos investigadores não foi possível este ano entrevistar todas as 74 — algumas emigraram, outras morreram, uma nunca compareceu aos encontros, alguns não foram encontrados. Foi possível encontrar e chegar à fala com 57.
“Ao contrário do que se poderia esperar, estamos perante um grupo maioritariamente ligado ao mercado de trabalho”, diz o relatório com base no facto de 42 terem trabalhado nos últimos três anos ou encontrarem-se "disponíveis para trabalhar”. A maioria dos que restam são idosos.
Nestas histórias impera, contudo, a precariedade: apenas 21 em 57 referem ter tido alguns períodos de estabilidade laboral ao longo da sua vida activa.
Apesar de muitos terem rendimentos do trabalho, e de reportarem diminuição nos apoios sociais, a maioria continua a ter um suporte muito significativo de pensões e subsídios públicos. Números: 54 em 57 beneficiam de prestações sociais várias (subsídio de desemprego, RSI, reformas dos pais, abonos de família, habitação social ou outros). Os suportes advindos das políticas sociais são contudo criticados “pela sua insuficiência e desadequação face às necessidades: critica-se a ausência de respostas em áreas básicas como o emprego, a habitação ou educação/formação”.
Muitos destes entrevistados são ainda marcados por aquilo que se considera ser uma pobreza geracional. “Em Portugal, frequentemente nasce-se pobre, e continua-se pobre, raramente deixando essa condição”, refere o relatório. A relação entre uma maior duração no tempo em situação de vulnerabilidade e a intergeracionalidade da pobreza (de pais para filhos) está presente em 35 casos. “Esta é a imagem mais clara do fracasso da nossa sociedade e das políticas de combate à pobreza”, considera o estudo.
Por outro lado, sendo certo que a pobreza e a exclusão são processos que podem atingir todos os grupos sociais, há públicos “particularmente expostos” — “Certas conjunturas familiares, de idade, de condição de saúde, geram grande exposição à pobreza e ao isolamento afectivo e social”. A toxicodependência, a monoparentalidade, a violência doméstica, por exemplo, são identificadas como problemáticas “com impacto na entrada ou manutenção da pobreza e exclusão social”, nomeadamente quando associadas a factores como a ausência de rendimentos e de equipamentos de suporte à família.
Sérgio Aires, director do Observatório, sublinha ainda “a percepção dos entrevistados de que os recursos estão desigualmente distribuídos” e de que as políticas sociais “são quantitativa e qualitativamente insuficientes”. “Estas pessoas fazem uma apreciação muito negativa do acompanhamento social que recebem”, nota.
Há também uma deterioração do estado de espírito do grupo: “estão mais pessimistas”, diz Sérgio Aires, “não vislumbram uma saída”. Isto numa cidade como Lisboa “que, vista de fora, é vista como uma cidade desafogada, rica”.
Se este estudo fosse replicado no resto do país as conclusões seriam as mesmas? “Em certas zonas do país, em certas freguesias do Porto e de outra cidades seriam, provavelmente, semelhantes, porque também aí encontramos estes perfis.”
Excertos das entrevistas:
“É querer comprar comprimidos e não ter o dinheiro. Andar a poupar, a poupar, a poupar. Hoje tomo amanhã não tomo. Não é? O dinheiro não chega.”
Luísa, 84 anos, idosa
“Foi mesmo por opção minha [não querer contrato nem pagar Segurança Social pelas três horas por semana que faz de limpezas], porque se eu tivesse de fazer descontos e tudo não ia receber quase nada.”
Carolina, 44 anos, trabalhadora pobre
“O problema é que a gente trabalha muito e ganha muito poucochinho, é só isso.”
Julieta, 48 anos, trabalhadora pobre
“Tenho ido comer à minha mãe. Mas não posso estar a vida toda assim, não é? [E ela pode ajudá-la um bocadinho?] Não, ela está acamada. Ela tem um cancro nos ossos, não anda.”
Dália, 59 anos, incapacitada
“Vou tentar-me aguentar no Rendimento Mínimo com a ajuda da Santa Casa até à altura em que me reformar, porque eu já sei que trabalho ninguém me vai aceitar. Na vida profissional, a minha vida está acabada. Se eu com vinte e tal não consegui!”
Júlio, 55 anos
“Sim. Estive a trabalhar. Trabalhei na rua da Madalena, a fazer limpeza. Entrava às 8h da manhã e saía às 11h30. Um part-time. Depois trabalhava aqui numa pastelaria. Ela telefonava-me e eu ia lá. Mas agora já não vou. Ela pagava muito mal. Entrava a um quarto para a uma e saia às 16h e ela pagava-me seis euros pelas 3 horas.”
Margarida, 43 anos, desempregada
“Tenho a dívida da minha casa [das rendas] E tenho a dívida com o banco. Tinha um crédito que foi pedido há 6 anos, era para 5 anos, mas quando a minha vida começou a piorar deixei de pagar e depois fui acumulando juros, juros, juros, e hoje posso-lhe dizer que o abono dos meus filhos, fico sem ele todos os meses.”
Carolina, 44 anos, trabalhadora pobre
“Eu sofri um bocadinho, chorei, porque eu era muito amiga das pessoas da Associação. Estávamos a ser ajudados já há bastantes anos. Se calhar acharam que já era um hábito nosso, que a gente já não merecia, que nos acomodámos com a ajuda deles. Não foi o caso. Eu, quanto menos precisar de ser ajudada, melhor. Sempre disse lá na Associação: mal tenha oportunidade de melhorar um bocadinho a minha vida eu não quero a vossa ajuda, porque se calhar quando eu tiver mais, haverá pessoas com muito mais prioridade do que eu. Sempre batalhei neste assunto e sempre mostrei a eles que não era uma acomodação, era mesmo uma necessidade.”
Anabela, 47 anos, desempregada