Agora em grande
Ao terceiro álbum, os Diabo Na Cruz abandonam as riffalhadas e atiram-se aos sintetizadores e à pop. É o Born In The USA deles, o disco para encher estádios. Ou, tendo em conta que estamos em Portugal, bailaricos e o Centro Cultural de Belém.
Pinheiro atacava uma pizza — com muito picante, como é de bom tom num baterista — enquanto Cruz — o vocalista e compositor dos Diabo Na Cruz — se ficava por uma salada. Tinha, no entanto, uma boa desculpa para tão pouco máscula opção culinária: “Comi de mais ao almoço. Aliás, o meu almoço acabou há bocado.” A sua avó fizera 90 anos, a mãe aprumara-se na doçaria e Cruz não tinha mais espaço dentro do corpo para comidas pesadas.
O objecto que provocava incómodo à dupla era Roque Popular, segundo álbum da banda e antecessor de Diabo Na Cruz, acabado de lançar. Para nossa surpresa, os Diabo Na Cruz ainda têm contas a acertar com esse Roque Popular, um disco que — para nós, como para muita outra gente — foi o equivalente musical de uma volta na montanha-russa enquanto se tenta comer algodão doce: perigo e melodia unidos num ritmo infernal, que por vezes amainava para nos oferecer pérolas como Luzia.
“Sem ofensa”, diz Cruz, no seu jeito de desconfiança lacónica e mordaz típico dos nativos do distrito de Aveiro, “para a maior parte das pessoas esse disco não foi tão bem recebido como o Virou! [o álbum de estreia], que por sua vez não foi assim tão bem recebido pelos críticos — o que me surpreendeu.”
Dão-se mais umas garfadas, deixa-se Cruz beberricar um pouco mais do seu gin tónico, espera-se que Pinheiro dê mais umas goladas de vinho e ao raspar a superfície encontra-se algo bem mais fundo do que uma simples embirração com os humores da crítica e do povo em relação a esta ou aquela obra: torna-se claro que Roque Popular ia dando cabo de Cruz.
“Há coisas que podiam ter sido mais feitas [no segundo álbum]”, solta João Pinheiro, e quando lhe perguntamos o quê ele hesita por um instante, como um treinador de futebol que teme que ao revelar os segredos tácticos da sua equipa a ponha em risco. “O Chegaram os santos, por exemplo”, diz por fim. “Ficou rápida de mais e só encontrámos o ritmo certo ao vivo. Agora está mais lenta e funciona muito melhor.”
O problema de Roque Popular foi Virou!, cujo êxito junto ao povo os fez permanecer na estrada durante dois anos, ao ponto de seis meses antes da data que haviam marcado para lançarem o segundo tomo não terem uma única canção feita. Os Diabo Na Cruz trabalham de forma independente, note-se, pelo que podiam ter editado o segundo disco quando quisessem — mas gostam de se impor metas, mesmo que as metas lhes dêem cabo da cabeça.
Cruz abre o jogo: “O Roque Popular foi feito num jorro. A paixão pela música sobrepôs-se à picuinhice do compositor. O resultado é que anda hoje tocamos o Virou! do princípio ao fim nos concertos e o Roque Popular não.”
Depressão
Olhando agora à distância, conclui-se que Virou! chegou na altura certa: “Era um disco sobre Portugal numa altura pré-Troika, mas em que já havia nuvens negras a pairar. Talvez as pessoas precisassem de um disco que falasse sobre Portugal e que atravessasse classes sociais e tivesse várias camadas de leitura.”
Ninguém esperava o êxito de Virou!. Na realidade, ninguém esperava que Virou! existisse. “Na altura”, conta Cruz, a Valentim de Carvalho estava tão interessada em contratar Samuel Úria que ofereceu os seus estúdios a toda a banda da FlorCaveira que os quisesse usar. “Gravámos o disco de graça”, revela, com ar de maroto que confessa uma travessura. “Mas mais tarde pagámos o estúdio, era o mais correcto.”
Dois anos depois estavam esgotados dos mais de cem concertos dados e com um prazo impossível em cima para acabarem a escrita de Roque Popular, razão pela qual Cruz ainda hoje sente que “é um disco inacabado”. Tão inacabado que começou a fazer este Diabo Na Cruz no dia a seguir ao lançamento oficial do segundo.
É nesta altura que Cruz — já no seu segundo gin — deixa escapar uma frase: “A depressão habitou-me de forma profunda a seguir ao Roque Popular.” João Pinheiro, um tipo acessível que só fala quando necessário, corrige: “Durante.”
No período que levou a Diabo Na Cruz, Pinheiro chegou a ver o seu lugar em causa: as novas canções que Cruz ia fazendo eram muito mais lentas, sem aquele ângulo funk que marcava a anterior obra da banda. “A dada altura perguntei-lhe se ia ser preciso um baterista para este disco”, conta o homem das baquetas. “Para este disco queria mudar por completo estilisticamente”, explica Cruz. “Fazer mais um disco com riffs grandiosos e ritmos funk não oferecia qualquer desafio — já o tínhamos feito nos discos anteriores.” Na sua vertigem perfeccionista, começou por imaginar “um disco de folk dos bosques, com um ribeiro manso a correr”. Era “a melancolia que havia dentro de [si] a comandar”.
“Melancolia clínica”, acrescenta Pinheiro, com picante na boca. É claro que foi um período duro para Cruz.
“Mas depois a gente gosta dos concertos e de pôr as pessoas a dançar e não dá para fazer um disco assim. Atirei os bosques para o canto”, completa o vocalista, que pelo menos quando chega a aguardente já parece ter deixado para trás qualquer sinal de depressão.
Grandes canções
Não há folk dos bosques, não senhor, mas o objectivo de fazer de Diabo Na Cruz um álbum radicalmente diferente dos anteriores foi conseguido. Ponto um: não há cá as ditas riffalhadas grossas que marcavam os dois capítulos anteriores. “Quê? Ia chegar à guitarra e fazer tum-tum-téu-t-tum-tum-tum-téu outra vez?”, pergunta-nos Cruz, como que justificando a opção pelos sintetizadores que marca este disco.
“Há mais sintetizadores no disco? Não sabia”, diz quando lhe fazemos ver que há um lado r’n’b no disco, até aqui ausente na banda. Em nosso socorro vem Pinheiro: “Então não há? Ontem estive a ouvir o disco assim de modo mais afastado e tem muito mais sintetizadores.” Cruz ri-se: há nele algo de Dylan (de quem é devoto), de nunca dar o braço a torcer, mas mostra-se capaz de gozar consigo próprio quando é apanhado nas suas tretas.
Claro que ele sabe que há mais sintetizadores. Um tema, Moça esquiva, vive de uma fantástica linha de sintetizador xunga, que não ficaria mal num disco de Roy Ayers. E em dado momento ele menciona o último dos Daft Punk como referência para este disco: “É um disco conceptual, proporciona uma viagem, e nós queríamos isso.”
O conceito pode resumir-se assim: é um disco centrado em Lisboa (fala-se no Teatro Maria Matos e no Copenhaga, uma discoteca da capital), com uma linguagem — por oposição ao anterior — acessível e uma vertigem pop. Isto traduz-se de forma imaculada numa estupenda canção como Saias, que soa a Bruce Springsteen circa Born In The USA acompanhado pelos Gaiteiros de Lisboa. Ao longo da canção, Cruz — que solta um “o-oh” igualzinho a Springsteen — enumera uma série de tipos de saias, umas “levantadas”, com o vento a entrar, e acaba a gritar “É ver prácreditar”. É daqueles temas que só os Diabo Na Cruz poderiam fazer: uma canção claramente sobre a beleza do sexo oposto mas que nunca chega a ser de mau gosto. “Essa é uma das vantagens de estar nesta banda: criámos um som e uma linguagem e temos a sorte de esse som e essa linguagem poderem permitir-nos ir a lugares a que outros não iriam.”
Mas o que marca definitivamente Diabo Na Cruz são as melodias, coisas tão simples como o refrão de Armário da Glória (que menciona Sérgio Conceição!). “Na digressão do Roque Popular, ele [Cruz] ia sempre no fundo da carrinha a trautear melodias para o telemóvel. Nós com um disco para promover e ele a fazer novas melodias”, confessa Pinheiro.
“A primeira coisa que se fez para este disco foram as melodias”, confirma Cruz. “Ficaram umas 25 de fora”, completa Pinheiro. “É darwinismo”, esclarece Cruz: “Fazes as melodias, acreditas mais numas do que noutras, mostras à banda, experimentas e as canções que entram no disco são as que resistem a todos esses passos do processo.”
No fim da refeição, quando já não havia espinhos na garganta, fala-se de Springsteen e daí salta-se para outras bandas que a dado momento se viram num dilema: para onde crescer. Deixa de ser uma entrevista e passa a ser uma conversa, claramente geracional: fala-se de Born In The USA, mas também de Disintegration, dos Cure, ou dos INXS e de não sei quantas outras bandas dos anos 1980 que decidiram ir a jogo e fazer discos enormes mas cheios de singles que chegassem ao maior número de pessoas, um objectivo que se adivinha no refrão de Duzentas mil horas, a canção de abertura deste disco — que consegue ser mais pop e mais amplo usando muito menos instrumentos.
“É um disco mais aberto às pessoas”, conclui Cruz, já no digestivo. “Nós tocamos no Centro Cultural de Belém e na festa do vinho. Somos uma banda que se senta com intelectuais e vai para a tasca com os velhos.” Faz uma pausa, dá um pequeno golo no líquido e finalmente, como se soltasse um desabafo há muito preso lá dentro, confessa: “Nunca tínhamos ido pela pop e, para um gajo que faz canções, fazer grandes canções é um objectivo. Um tipo tem de se atirar à grande canção. Fazer um disco, mas em que cada canção é um single — pode parecer paradoxal em 2014, mas é o que queremos”.
Mais uma pausa, mais um golo, e eis que ele diz aquilo que há muito sabemos mas nunca o ouvíramos dizer: “Se não é para ser uma grande banda, para que é que andamos aqui?”. Agora já sabem: os Diabo Na Cruz querem ser tão grandes quanto se pode ser grande em Portugal, pôr o intelectual tímido a dançar de roda com a moça de aldeia e fazer as pessoas felizes.
“Este é um disco muito menos negro, muito mais positivo. Isso para nós também era um desafio”, admite Cruz, e lembramo-nos da letra da magnífica Ganhar o dia, em que canta “É bom também ter contrariedades/ sem nunca perder a fantasia/ tentar, falhar, sofrer, perder/ um tempo a duvidar”, antes de acabar assim: “Deixem lá contagiar-se/ que eu estou pronto para ganhar o dia”. Está ganho, meninos.