Que Educação queremos?
Nuno Crato caiu em desgraça quase ironicamente por um erro matemático de palmatória e pelos meandros do ministério que ele queria implodir.
Começámos por tolerar sem contraditório um discurso populista – e, no entanto, sagaz e hábil que a tantos seduziu – que encontrou terreno fértil onde muitos começavam a experimentar fortes desencantos na tarefa educativa e na vida das escolas (e até da sociedade), passados que foram os entusiasmos primeiros das grandes reformas que se seguiram à aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo português em 1986. Tolerámo-lo porque o sabíamos sem qualidade e porque, entregues à causa de uma educação que sempre quisemos de qualidade para todos, no democratíssimo e justíssimo conceito de escola pública, não lhe reconhecemos o perigo. Não fomos suficientemente desconfiados nem perspicazes em relação ao que se estava a construir: a imagem de um especialista, de um cientista rigoroso e exigente, dada assim de bandeja a uma opinião pública (e até mesmo especializada) sedenta de ordem e disciplina, desejosa de que alguém lhes apontasse os maus de uma fita de desgraças cujas dimensões catastróficas eram mais ficcionadas do que reais e como se a solução para problemas complexos fosse simples e unívoca. Somos, no entanto, conscientes das múltiplas dificuldades que nos advêm de nos termos atrasado quase 200 anos no desencadear de políticas educativas abrangentes, coerentes e significativas, frente aos países mais desenvolvidos neste âmbito, o que arrasta consigo um forte desprestígio da escola e do saber, numa sociedade ainda marcada por tantos desequilíbrios sociais.
Nuno Crato caiu em desgraça quase ironicamente por um erro matemático de palmatória e pelos meandros do ministério que ele queria implodir. São as curvas da história, é a espuma dos dias que, neste caso, não aparece... por acaso. Em novembro de 2012, numa reunião interna da Associação de Professores de Matemática (APM) a que tenho a honra de presidir, e quando a maré destruidora do ministro se levantava com todo o seu ímpeto no arranque das metas curriculares, eu dizia, referindo-me a essas políticas: “Acreditamos que o que não tem valor revelar-se-á por si; o que não tem sustentação acabará por cair, pese embora os malefícios que entretanto causará”. E, se ainda não estamos a ver as políticas cair, já lhes adivinhamos a hecatombe porque não pode ser de outra maneira. Enquanto responsável político último dos erros na colocação de professores, este ministro arca com outras graves e mais permanentes responsabilidades pessoais que, sob a capa da melhoria e do rigor, mais não são que a destruição, por um retrocesso absurdo e iníquo, dos caminhos que em educação Portugal vinha a trilhar lentamente, mas cada vez com mais segurança e preparação e, finalmente, com resultados. Refiro apenas duas, para que não nos esqueçamos o quão recentes são e não as tenhamos como factos consumados e irreversíveis, mas como o que são: uma deriva experimentalista de quem nada sabia nem sabe de educação, para além de lugares comuns e algumas referências ideológicas.
Começo pelas metas curriculares e, no que à Matemática diz respeito, pelas alterações dos programas do ensino básico e de Matemática A, numa cruzada pessoal de Nuno Crato. É bom que não nos esqueçamos de que o programa do ensino básico homologado por este ministro em 2013 veio suspender um programa homologado em 2007 e que precisamente em 2013 terminava a sua generalização. Para esse programa tinha havido um período de experimentação devidamente avaliado, tinha sido feita formação de professores com acompanhamento em sala de aula, havia manuais escolares recentes... Todo um investimento deitado fora cujas denúncias não encontraram qualquer eco nos decisores políticos. A sua substituição não se baseou em dados de avaliação, em incongruências do programa, em desfasamento com a investigação nas áreas competentes sobre esta matéria – currículo, didática, avaliação – ou com a prática internacional de referência. A menos que essa referência internacional seja a política retrógrada dos tempos de George Bush, que produziu efeitos catastróficos na escola pública dos EUA e também no ensino da Matemática.
Outro aspeto relevante e decisivo prende-se com a avaliação. O espírito com que se está a enfrentar a questão da avaliação das aprendizagens em Portugal reproduz essa política de pensamento único: exames para tudo e, é claro, exames de Matemática e Matemática nos exames! Mas exames não significam maior rigor ou mais exigência. Representam, isso sim, um aspeto muito limitado e estreito da avaliação e tendem a adulterar ou contaminar negativamente a prática letiva e as aprendizagens dos alunos.
Não posso deixar de recordar o que o matemático holandês Hans Freudenthal (1905-1990) escreveu sobre esta contaminação: “O exame torna-se um objetivo, o que vem para o exame um programa, o ensino de matéria para o exame um método”. Aceito que, no sistema português, se realizem provas nacionais no final do ensino básico (9.º ano) e no final do ensino secundário (11.º e 12.º anos) e entendo-as como um instrumento regulador e uma necessidade social, consciente, no entanto, dos seus limites e constrangimentos. Não posso é aceitar que o ensino possa vir a converter-se num amplo campo de adestramento para enfrentar provas que não fazem justiça às aprendizagens mais significativas e relevantes para o aluno, no momento em que aprende e para a sua vida futura; provas no 4.º e no 6.º ano que introduzem precocemente no ensino segregações desnecessárias e fortes desequilíbrios no processo de ensino e de aprendizagem, vindo, além disso, afetar negativamente a relação dos alunos com a Matemática. Assim como não aceito que as provas de Matemática A sejam entendidas como um poderoso instrumento de seleção entre os melhores, cometendo-se assim injustiças grosseiras para aquela maioria que se prepara no âmbito das suas aulas de Matemática, à luz do programa em vigor. Aliás, de uma maneira geral e a título de exemplo, as provas de Matemática realizadas em 2014 (particularmente as de 2.º ciclo e as de Matemática A) foram provas em que a insistência desmesurada no cálculo e nos aspetos formais e de mera memorização tendem a reduzir a aprendizagem escolar das nossas crianças e jovens a uma insana e assoberbante tarefa de treino de rotinas que, desta forma, se substituem ao desenvolvimento de capacidades intelectuais mais poderosas e duradouras, mas dificilmente avaliáveis em exame.
De facto, é impossível quantificar capacidades fundamentais como o desenvolvimento do sentido crítico, da capacidade de elaboração de conjeturas, justificações e generalizações, de resolver problemas, de raciocinar, argumentar e comunicar matematicamente. Este, sim, um empreendimento de grande exigência para alunos e professores que obriga a atenção, rigor e grande disponibilidade e investimento. E, por isso, desafiante, edificador de mulheres e homens com o poder de compreender, de analisar, de intervir, de criticar, de propor. Por mim, é nesta Educação que continuo a acreditar. É para ela que dirijo os meus esforços, as minhas capacidades e conhecimentos. Acredito que, por nós e pelos alunos, vale a pena continuar a lutar por ela.
Professora de Matemática e presidente da direcção da APM