Os carros buzinam demasiado alto, os outros são mais picuinhas que o normal, a cama é uma utopia inalcançável e o plano ideal era zarpar num avião daqui para fora. Assim são os dias maus, os dias em que o nojo do que tudo o que nos circunda se apodera do nosso entendimento e, sem mais nem quê, o ódio torna-se a emoção mais natural e inabalável. Pois bem: abracem-se os ódios, as fúrias, o “spleen” destas horas e todos os humores profanos da existência.
Começa com uma coisa pequena, seja um telefone a vibrar ou um sapato deslizando sobre a calçada escorregadia, um pássaro com um desarranjo ou uma resposta ao chefe menos calculada que era suposto. E depois tudo se torna num castelo de cartas exposto a uma pequena ventania. Ora é a caneta que não escreve, ora é a namorada que não responde, ora é o almoço que custou mais do que devia, ora é o atrasado do taxista que nos partiu o espelho do carro. Em ebulição, vamos lançando impropérios a quem estiver a jeito para levar com eles. Mais tarde, a ponta da lança inverte-se e somos nós mesmos o alvo da indignação.
E depois vem a desorientação, as perguntas: porquê a mim?, porquê isto?, mas haverá alguma forma de fazer com que isto ou aquilo me corra melhor? Damos por nós a meter ouvidos adentro canções enraivecidas e a tomar como nossas os desabafos dos artistas. A minha favorita? “Estou a ser parte de uma piada cósmica mas não percebo a 'punchline'”, berrada a plenos pulmões por Corey Taylor, em “Three Nil”, dos Slipknot.
Como é que se sai daqui? Uma noite de sono? Não. De manhã, a neura ainda lá está. Talvez se procure melhor na entrelinha de uma mensagem, num sorriso tímido de um desconhecido, na parte da canção que ainda não havíamos escutado com a atenção merecida. Talvez, talvez. Deve vigorar a consciência de que o brilho de um raio de sol só se faz realmente sentir por entre as cinzas do apocalipse.
O que seria da vida sem dias duros, horrorosos, daqueles em que tudo se despista e nada sabe seguir o trilho dos carris? Todas aquelas frases feitas sobre a importância de momentos funestos acabam por ser verdadeiras. Colocar a vida em perspectiva: saberá rir um homem que nunca chorou? Saberá a criança gostar plenamente de uma guloseima sem nunca ter provado o sabor acre de brócolos?
E nunca esquecer que o bom também sabe, demoniacamente, ser mau. As alegrias estagnam-nos, provocam o esmorecer das ambições, impedem-nos de procurar noutros lugares por aquela camisola gira há muito desaparecida. Esvaem-se as necessidades de um futuro melhor porque, aqui e agora, é que se está bem. E, se calhar, quando se vai a ver bem, não está.