Melhorar a vida e a cidade, quarto a quarto

“Cidade a cidade,/ bairro a bairro,/ ilha a ilha,/ casa a casa,/ quarto a quarto.” Foi assim a experiência do SAAL, que logo a seguir ao 25 de Abril, entre 1974-76, mudou as condições de vida de muitas populações e a arquitectura em Portugal. Uma aventura que é agora revisitada no Museu de Serralves. Mas não é “uma romaria à Senhora da Saudade”, diz o comissário Delfim Sardo.

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O Processo SAAL pôs arquitectos e comissões de moradores a redefinirem conjuntamente modelos de habitação CORTESIA ALEXANDRE ALVES COSTA
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As populações desfavorecidas foram as mais tocadas pelas intervenções das várias equipas do SAAL CORTESIA ALEXANDRE ALVES COSTA
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Manifestação de moradores ligados ao SAAL/Norte em Janeiro de 1975 CORTESIA ALEXANDRE ALVES COSTA
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Manifestação no Porto em Maio de 1975 contra o decreto que impedia as ocupações CORTESIA ALEXANDRE ALVES COSTA
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As intervenções nos diferentes bairros são documentadas por maquetas criadas expressamente para a exposição do Museu de Serralves FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Maria Proença, socióloga reformada, recorda assim um dos episódios que viveu nesses “anos de brasa” do processo SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), entre 1974 e 1976, quando um vasto conjunto de arquitectos e estudantes de arquitectura, em articulação directa com as comissões de moradores, se lançaram na mudança das condições de habitação e de vida de populações por todo o país.

Maria Proença era, à época, funcionária do Fundo de Fomento da Habitação (FFH); ofereceu-se para participar nessa missão e, convidada por Nuno Portas, tornou-se coordenadora, e depois directora-geral, do SAAL. Nuno Portas, arquitecto e urbanista, era o secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, que lançara o despacho de 8 de Agosto de 1974 a criar este novo programa destinado a fazer com que “os moradores fossem também os protagonistas do processo, e não apenas os arquitectos”, recordou ao Ípsilon.<_o3a_p>

“Corri o país inteiro, do Porto ao Algarve, mapeando as carências habitacionais das pessoas – e toda a gente as tinha”, acrescenta Maria Proença, destacando, no entanto, a experiência vivida no Porto. “Não sei se no tempo das feministas na América também seria assim”, diz a socióloga, que testemunhou situações idênticas no Algarve, com os “índios da Meia-Praia” – tornados famosos pelo filme que António da Cunha Telles realizou em Lagos, em 1975, Continuar a Viver: Os Índios da Meia-Praia –, onde “eram também as mulheres que desenhavam as casas, diziam onde ficava a cama, como se passava daqui para ali…”<_o3a_p>

Maria Proença diz que os dois anos do SAAL “foram das coisas mais bonitas que aconteceram no nosso país”, alteraram profundamente a vida das pessoas e, inclusivamente, a ajudaram a si própria a “viver uma vida melhor”.<_o3a_p>

A recordação dessa experiência como histórica e única é um denominador comum dos testemunhos de quantos têm vindo a abordar esse período. Alexandre Alves Costa, que foi o coordenador do SAAL no Porto, diz que se tratou de “um momento excepcional em que se pôde trabalhar a arquitectura numa relação directa com os moradores”, e em que foi possível “regenerar a cidade, colocando-a ao serviço das pessoas mais pobres e desfavorecidas”.<_o3a_p>

Gonçalo Byrne, responsável pela equipa que trabalhou no Bairro Casal da Figueira, em Setúbal, refere-se-lhe também como “uma das experiências mais enriquecedoras” de toda a sua vida profissional. <_o3a_p>

“Para mim, era tudo maravilhoso”, sintetiza Maria Proença.<_o3a_p>
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Evitar uma romaria de saudade<_o3a_p>
Mas o SAAL foi também uma experiência de arquitectura, que deixou marcas no próprio tecido da profissão e da disciplina no país. É este o ponto que mais interessa a Delfim Sardo, o comissário da exposição O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976, que hoje à noite (22h) é inaugurada no Museu de Serralves.

“O SAAL mudou a relação colectiva da população com a arquitectura e deu uma razão efectiva aos arquitectos, num momento muito complexo mas também muito estimulante para pensar a disciplina e a sua relação com o público”, diz o curador.<_o3a_p>

Ainda que reconheça o capital de afectividade que essa experiência deixou na maioria dos intervenientes, Sardo explica que não quis fazer da exposição “uma romaria à Senhora da Saudade”. Por essa razão, construiu o núcleo central da mostra com materiais, históricos e actuais, exclusivamente relacionados com a prática da arquitectura, evitando “fetichizá-la” e deixando toda a documentação e memorabilia da época para o corredor de saída do percurso expositivo. <_o3a_p>

O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976 é a primeira exposição compreensiva dedicada a este programa, que já motivara algumas teses, como a que José António Bandeirinha publicou em livro, O Processo SAAL e a Arquitectura no 25 de Abril de 1974, ou documentários como As Operações SAAL (2006), de João de Dias, ou Casas para o Povo (2010), de Catarina Alves Costa.<_o3a_p>

O próprio Delfim Sardo tentara já pegar no tema em 2010, quando foi comissário da Trienal de Arquitectura de Lisboa, mas ficou-se então por um pequeno apontamento. Conseguiu, este ano, reunir as condições para um trabalho mais ousado em Serralves, onde a exposição ocupa seis espaços do edifício desenhado por Álvaro Siza – mas “sem mexer na sua arquitectura”, onde só uma janela teve de ser tapada para permitir a projecção de imagens. <_o3a_p><_o3a_p>

Dez casos exemplares<_o3a_p>
<_o3a_p>A exposição, que tem layout do atelier Barbas-Lopes, anuncia-se logo no átrio do museu através de uma escultura-performance de Ângela Ferreira, criada de propósito para o Porto e em ligação, por “harmoniosa coincidência”, diz o curador, com uma peça que a artista está a fazer sobre Siza em Haia, na Holanda.<_o3a_p>

As duas salas de entrada são dedicadas ao SAAL-Porto. Há uma grande maqueta orográfica da cidade, que permite localizar as intervenções realizadas, e maquetas mais pequenas dos quatro bairros documentados: São Victor (coordenação de Álvaro Siza), Antas (Pedro Ramalho), Miragaia (Fernando Távora, Bernardo Ferrão e Jorge Barros) e Leal (Sérgio Fernandez).<_o3a_p>

Um slide-show de 80 imagens – do arquivo documental pessoal de Alexandre Alves Costa – cria uma espécie de fresco visual das movimentações e manifestações dos moradores no processo. No chão da segunda sala, há uma planta em escala real (1:1) de uma das habitações que Siza projectou para o bairro de São Victor, no centro da cidade, e onde se percebe a “qualidade do desenho para um espaço tão exíguo”, nota o curador.<_o3a_p>

Ao contrário do que aconteceu em Lisboa, a maioria das intervenções no Porto foram realizadas no núcleo histórico. “Esse facto ajudou a Escola do Porto a formular um pensamento urbano sobre a cidade”, diz Delfim Sardo. <_o3a_p>

E este é um bom momento para perceber as diferenças entre a Escola do Porto, que a aventura do SAAL ajudou a solidificar e depois a afirmar internacionalmente, e a arquitectura que na mesma altura se fazia na capital.<_o3a_p>

Com alguma ironia, Maria Proença, que diz não querer pronunciar-se sobre questões de arquitectura, por não ser a sua formação, sentiu que, a certa altura, “os do SAAL-Norte consideravam-se sempre os grandes sábios, os grandes mentores”. E, depois, houve condicionalismos de ordem política e partidária, que a sua “ingenuidade e falta de experiência de militância política” não lhe permitiu entender, na altura.<_o3a_p>

Em recente entrevista ao PÚBLICO, Siza comentou também que, na arquitectura, “há sempre um Benfica-Porto no ar”…<_o3a_p>

A verdade é que os arquitectos formados na ESBAP (Escola Superior de Belas Artes do Porto) traziam já nessa altura “um espírito de escola”, que o SAAL veio reforçar e ao qual daria depois projecção internacional, como assinala José António Bandeirinha, que foi consultor de Delfim Sardo na organização da exposição de Serralves.<_o3a_p>

O comissário chama a atenção para a singularidade do projecto de São Victor, um especial caso de estudo, que levou inclusivamente o MoMA de Nova Iorque a adquirir os respectivos desenhos de Siza. “Aqui só foram construídas 12 casas, a relação com a envolvente acabou destruída com a demolição de um muro, que era fulcral no projecto, mas mesmo assim as casas mantêm-se heroicamente como exemplo de uma arquitectura de enorme qualidade”, diz Delfim Sardo.<_o3a_p>

Foi a partir deste projecto – e do que, paralelamente, desenhou para o Bairro da Bouça, que era um programa do FFH que vinha já de antes do 25 de Abril, mas acabaria integrado no SAAL – que Siza foi convidado para Berlim e Haia, onde começa a conquistar visibilidade internacional para a sua obra, e simultaneamente para a Escola do Porto.<_o3a_p>

Delfim Sardo cita um segundo aspecto para explicar as diferenças entre Porto e Lisboa, que passa pelos destinos diversos das suas escolas de Belas Artes. Enquanto no Porto, a entrada de Fernando Távora, a seguir à reforma lançada por Carlos Ramos, ajuda a promover a transformação da Escola, a “não entrada de Nuno Portas na da capital levou a que o pensamento sobre a arquitectura tivesse acabado por se concentrar nalguns ateliers, nomeadamente o de Nuno Teotónio Pereira”. Ou seja, em Lisboa não chegou nunca a formar-se um “espírito de Escola”.<_o3a_p><_o3a_p>

O fim do SAAL, por Artur Rosa<_o3a_p>
<_o3a_p>Essa polarização da prática da arquitectura em Lisboa pode de algum modo ser verificada na sala com os quatro projectos da capital, nos bairros da Curraleira-Embrechados (José António Paradela e Luís Gravata Filipe), Bacalhau-Monte Côxo (Manuel Vicente), Quinta das Fonsecas-Calçada (Raúl Hestnes) e Quinta de Bela Flor (Artur Rosa). As intervenções incidiram aqui sobre áreas de maior extensão e descentradas relativamente ao núcleo urbano, e estão mais próximas do plano, tendo mais habitação vertical do que casas.<_o3a_p>

Nesta sala, chama a atenção a reconstituição da instalação-performance com que Artur Rosa assinalou a extinção do programa SAAL (Outubro de 1976), fotografando-se a abraçar plantas arquitectónicas e encerrando estas e o seu cavalete dentro de uma espécie de pirâmide fechada.<_o3a_p>

Tanto Maria Proença como Gonçalo Byrne coincidem na convicção de que duas importantes razões para o fim do SAAL, para além das razões políticas conjunturais, foram os problemas levantados pela questão da propriedade dos solos, muitos dos quais tinham sido ocupados no movimento revolucionário, e também a burocracia no financiamento, além da incapacidade de resposta, por parte do poder, ao associativismo reivindicativo. Um vazio que viria, mais tarde, a ser preenchido pela banca, com os resultados conhecidos.<_o3a_p>

Gonçalo Byrne admite também que, “de uma maneira geral, os próprios arquitectos não estavam preparados para um projecto com estas características, de diálogo e encontro com culturas nem sempre coincidentes”. Mas a verdade é que o bairro de 400 casas que projectou para o Casal da Figueira, uma comunidade de pescadores numa encosta da cidade de Setúbal, “ainda hoje funciona de uma maneira muito vivida”, diz Sardo. <_o3a_p>

O estado actual deste bairro está documentado num port-folio de Daniel Malhão, que, com André Cepeda e José Pedro Cortes, foi convidado a registar o que hoje existe do SAAL nos dez bairros da exposição.<_o3a_p>

Já no Algarve, nota o comissário, “mais importante do que a arquitectura foi a participação popular”, como se pode ver, na sala respectiva, num segmento de Continuar a Viver - Os Índios da Meia Praia.<_o3a_p>

A versão integral do filme de Cunha Telles, como outros que documentam ou ficcionam não apenas o período do SAAL, mas também o que era viver em Portugal na década anterior ao 25 de Abril de 74 – como Dom Roberto, de Ernesto de Sousa; Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, Belarmino, de Fernando Lopes –, vão ser exibidos num programa paralelo à exposição, promovido pelos serviços educativo e de artes performativas de Serralves, e que inclui visitas guiadas, teatro, instalações sonoras e performativas… E ouvir-se-á a música de Victor Rua, numa banda sonora criada expressamente para o corredor de saída da exposição, onde se expõe a memorabilia do SAAL.<_o3a_p>

Numa faixa que percorre todas as paredes da exposição, está inscrita uma linha do tempo com as datas do processo e a histórica política do país. E também com mil nomes – os arquitectos, engenheiros, sociólogos, assistentes sociais, desenhadores, juristas, estudantes… –, que José António Bandeirinha elencou como “protagonistas” do SAAL.<_o3a_p>

Em destaque no programa paralelo está o ciclo Ambulatório, com coordenação de Nuno Grande, que vai voltar a reunir alguns dos arquitectos que participaram no processo com os responsáveis históricos desses bairros e os seus moradores actuais. “Agora que o SAAL chega ao museu, é preciso também voltar aos bairros, ao encontro das pessoas para quem as casas foram feitas”, justifica Nuno Grande.<_o3a_p>

A exposição O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976 é a “pièce de résistance” de um tríptico que começou no dia 10 de Maio com um simpósio em Serralves – “que foi muito útil para a preparação da actual exposição”, diz Sardo –, e vai prolongar-se, a 14 de Novembro, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com o colóquio internacional 74-14: O SAAL e a Arquitectura #.<_o3a_p>

Em Maio do próximo ano, a exposição de Serralves vai ser levada a Montreal, ao prestigiado Centro Canadiano de Arquitectura, que recentemente assinou um acordo com Siza para a guarda, tratamento e estudo de grande parte dos seus arquivos, em articulação com Serralves e a Gulbenkian

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