Do troll aos vídeos de gatinhos: bem-vindos ao folclore 2.0
Folclore? Não tem de ser uma coisa do passado. Em nenhum outro lugar ele está tão vivo e próspero como na Internet.
Durante três dias, dezenas de antropólogos e investigadores de ciências sociais e humanas apresentaram conferências sobre danças tradicionais, artesanato e provérbios. O galo de Barcelos fez uma aparição – na sua versão actual, pop, para consumo de turistas. Um galês trouxe um fado de Carminho e perguntou: “Isto é folclore?” Um português trouxe Quim Barreiros e a plateia riu-se, sem contestar.
Tudo isso seria mais ou menos de esperar num encontro sobre folclore. Até que, uma manhã, um viking começou a falar de trolls – essas criaturas frequentemente anónimas que insistem em infernizar a Internet e as redes sociais com comentários ofensivos – e disse: isto também é folclore.
Tok Thompson, antropólogo e professor na University of Southern California, em Los Angeles, não parece estar preocupado com a perda de tradições ou questões de autenticidade que habitualmente ocupam os folcloristas. Ele defende que o folclore não tem de ser forçosamente rural e antigo, nem tão-pouco circunscrito à identidade de um grupo geograficamente definido. E que ele está mais presente na nossa vida contemporânea do que imaginamos.
“Para mim, folclore é simplesmente aquilo que nos é transmitido por outras pessoas, e não por livros ou instituições”, explicou o conferencista americano (um ramo norueguês na genealogia familiar fá-lo parecer escandinavo). Um folclorista tenta perceber porque somos atraídos por vídeos de gatinhos no YouTube ou porque é que a operação plástica de Renée Zellweger é um tema irresistível.
Todos os grupos têm o seu próprio folclore: mulheres, advogados, médicos, skaters, racistas, judeus, etc. E em nenhum outro lugar ele está tão vivo e próspero como na Internet, simplesmente porque a Internet se tornou o espelho predominante da nossa cultura.
Não há limites para a quantidade e os géneros de folclore na Internet. Exemplos: memes, mashups, grande parte do que aparece nos nossos murais do Facebook, até a Wikipédia. O troll é um caso particularmente eloquente porque mostra até que ponto o folclore mais antigo não só resiste como se adapta à era da Internet. Os trolls eram outrora criaturas imaginárias da mitologia escandinava que viviam à margem da sociedade, escondidos em bosques, na montanha ou debaixo da ponte, e que destruíam propriedades alheias. Hoje, os trolls são os ogres da Internet, demonstrando o mesmo tipo de comportamento anti-social e disruptivo. Há centenas de cartoons, anedotas e provérbios a circular na Internet que retratam os trolls modernos como se fossem as figuras mitológicas dos contos escandinavos – feios, desagradáveis, pouco inteligentes. Basta pesquisar “Internet trolls” no Google. Bem-vindos ao folclore 2.0.
Folclore vs. literatura
Apesar de se manter interessado em coisas “antigas” como as tradições celtas ou tribos índias do Alasca, Tok Thompson acredita que o futuro do folclore está na Internet. As suas aulas são cada vez mais disputadas por estudantes interessados. “Tornou-se mais fácil explicar aos meus alunos o que é o folclore. Em dez anos noto uma grande diferença. Há dez anos era mais complicado explicar a noção de autoria colectiva. Agora eles percebem isso imediatamente. Porque faz parte do seu mundo. Vejo muitos alunos frustrados porque outros departamentos, como o de literatura, não reconhecem esse tipo de criação como sendo válido. Porque é ‘derivativo’, dizem. É o tipo de insulto que o departamento de literatura pode atribuir aos mashups [composições feitas a partir da mistura de várias canções pré-gravadas]. Mas, para os estudantes, eles são uma expressão da sua identidade. Muito do meu trabalho hoje em dia é simplesmente manter-me actualizado em relação aos meus alunos”, diz Thompson.
De certa forma, folclore é o contrário da literatura: é intrinsecamente mutável e diverso, ao passo que um texto assinado é fixo. “O problema da literatura de autor é que só nos dá a perspectiva de uma pessoa. Com o folclore tem-se a perspectiva de um grupo. Isso interessa-me – parece-me mais representativo daquilo que as pessoas pensam”, explica Thompson ao PÚBLICO.
“Hoje em dia escrever romances é uma coisa um pouco antiquada para os meus alunos mais novos. Não é tão interessante como as novas formas de arte que envolvem uma autoria colectiva. A nossa sociedade está a atravessar uma mudança profunda e a distanciar-se da literatura de autor e de fontes individuais de autoridade. Os departamentos de literatura não sabem lidar com o que eu estudo porque não há um autor. Mas é cada vez mais central na nossa cultura. É aquilo que interessa às pessoas. E acho que os folcloristas estão numa óptima posição para estudar e perceber estas novas expressões. Porque estamos habituados a coisas sem autores.”
Essa não é a única provocação sugerida por Thompson. Ele acha que a escrita e a leitura têm os dias contados. Daqui a cem anos podem não existir, diz. E quem resistir à ideia invocando Shakespeare corre o risco de ser frontalmente chamado antiquado.
O interesse dos folcloristas pela Internet é recente, mas tem cada vez mais entusiastas. Entre um terço e metade das conferências apresentadas no congresso anual da American Folklore Society são sobre folclore na Internet. Mas Tok Thompson nota “uma tremenda diferença” na forma como as academias americana e europeia aceitam isso. “Vemos isso nas conferências deste congresso em Lisboa”, diz o antropólogo. “Muitos europeus continuam particularmente investidos na ideia de que o folclore deve ser geograficamente delimitado e deve ser antigo. Há razões que explicam isso: a formação dos Estados-nação na Europa esteve muito directamente ligada à afirmação do folclore. Houve uma politização do folclore na Europa. Isso nunca existiu na América. Foi mais fácil para nós entrarmos na pós-modernidade porque nunca tivemos uma pré-modernidade.”