As duas máquinas que escolhem os presidentes entre a balbúrdia dos partidos

Após Collor de Mello, só o PT e o PSDB disputaram a nomeação dos presidentes, resistindo a ameaças como Marina Silva ou o PMDB, o maior partido do país.

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Lula da Silva, no PT, e Fernando Henrique Cardoso, no PSDB deixaram máquinas bem oleadas VANDERLEI ALMEIDA/AFP

Desde que a democracia regressou em pleno ao país após a longa noite de ditadura militar (1964-1985), só por uma vez a escolha do presidente brasileiro não opôs os candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT) com os do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB): foi em 1989, quando a primeira escolha através do sufrágio universal pôs frente a frente Lula da Silva e Fernando Collor de Melo, do Partido de Reconstrução Nacional numa campanha dramática que Collor acabaria por ganhar na segunda volta. Desde então, com Lula e com Dilma Rousseff pelo lado do PT, e com Fernando Henrique Cardoso (FHC), José Serra, Geraldo Alkmin e, agora, Aécio Neves pelo do PSDB, os dois partidos têm reservado para si as eleições e garantido a rotatividade do poder no palácio do Planalto.

Marina Silva, apoiada pelo Partido Socialista Brasileiro, chegou a ameaçar quebrar o duopólio entre o PSDB e o PT, mas, apesar de obter 22 milhões de votos, acabou na posição que ocupara nas eleições de 2010: no terceiro lugar, fora da escolha decisiva da segunda volta. E o maior partido brasileiro, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) continua remetido ao seu habitual papel de muleta de um dos principais contendores (integra a coligação que apoia Dilma Rousseff e indicou o vice-presidente da lista, o paulista Michel Temer). Para os cientistas políticos que estudam o sistema brasileiro, o que acontece é fácil de explicar. “Para um partido ter um candidato a presidente precisa de reunir três condições: dispor de um mínimo de unidade interna para se unificar em torno de um nome; ter um programa político que o diferencie dos outros; e ter reconhecimento político por parte dos eleitores”, recorda Paulo Victor Melo, cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

Ora, no Brasil só o PSDB e o PT reúnem estas três condições. Têm um partido estruturado e implantado em todos os estados do Brasil, dispõem de um conteúdo programático que os eleitores conseguem perceber através das heranças dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1994/2002) e de Lula da Silva (2002/2010), e são capazes de esgrimir bandeiras capazes de mobilizar o eleitorado, seja a estabilização das finanças públicas operada pelo Plano Real, seja a correcção das desigualdades obtida pelas políticas sociais dos primeiros governos do PT.

Por oposição, o PMDB está fora destes critérios. Herdeiro do bloco de oposição à ditadura militar, o partido reunia políticos de diferentes quadrantes ideológicos, desde a esquerda de Ulisses Guimarães, o núcleo duro que fundou o PSDB e até deputados da ala direita habituados a apoiar os generais que dominaram o Brasil. Com o passar dos anos e após sucessivas cisões que estão na origem de boa parte dos partidos de hoje (ou que recuperaram siglas forçadas a extinguir-se pela ditadura, como o Partido Trabalhista Brasileiro de Getúlio Vargas e de Leonel Brizola), o PMDB transformou-se numa “federação partidária de caciques locais com uma articulação mínima para manter a unidade”, na leitura de Paulo Victor Melo, que tem dedicado parte da sua actividade científica a estudar este partido singular.

O seu programa é por isso vago, as suas lideranças confusas e as suas opções são muitas vezes determinadas mais pelos interesses dos seus membros do que pelas necessidades do partido. É o chamado “fisiologismo”, que muitos consideram ser um vestígio do regime oligárquico herdado do colonialismo português.

Na origem, quer o PT quer o PSDB tem as suas origens no coração do poder económico e político do Brasil, o estado de São Paulo. O PT nasceu primeiro, em 1980, um ano depois de a ditadura abrir o sistema partidário. Reunia um amplo espectro de correntes de esquerda que englobavam desde trostkistas a católicos progressistas, intelectuais de primeira linha como Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque), protagonistas do activismo social como Paulo Freire ou o camponês nordestino perseguido pela ditadura Manuel da Conceição. Mas o núcleo duro que promoveu a sua criação, numa reunião caótica num colégio de São Paulo em Julho de 1980, era liderado pelos sindicalistas da indústria automóvel. Lula da Silva, que se começara a destacar como um intérprete do sindicalismo moderno, tornou-se o seu líder carismático. Ainda hoje, 35 anos depois, o é.

O PSDB procurava representar uma outra faceta política do poder de São Paulo. Reunia figuras históricas da oposição, como Mário Covas, intelectuais como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), jovens ligados a uma nova geração como Aécio Neves, quadros do activismo estudantil que haviam conhecido o exílio como José Serra (FHC também teve de abandonar o país nos anos de chumbo dos militares) ou figuras com experiência política e apoio popular, como o ex-governador de São Paulo Franco Montoro. A sua proposta política tinha um cunho modernizante, mas era antes de mais o resultado de uma dissidência do bloco político que na época ocupava o poder. Não era uma criação de base como fora o PT.

Nos primeiros anos da democratização, ambos os partidos defendiam propostas que hoje seriam suspeitas de padecer de radicalismo de esquerda. O PSDB advogava no seu programa, que teve o apoio de intelectuais da craveira de Hélio Jaguaribe, a abolição do “carácter nacionalista e estatizante que caracterizava a feição do Estado brasileiro desde o governo Vargas na década de 1930”, de acordo com o cientista político Celso Roma, autor do estudo A institucionalização do PSDB entre 1988 e 1999. Mas não recusava os tópicos de cariz mais socializante inscritos na Constituição de 1988, advogava a “a prevalência do trabalho sobre o capital” e propunha “a construção de uma ordem social justa e garantida pela igualdade de oportunidades”. O PT ia mais longe e recusava o reformismo do PSDB. No seu programa original, afirmava que "as correntes social-democratas não apresentam, hoje, nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo imperialista".

A experiência do poder e o afastamento dos anos da ditadura mudaram a natureza dos dois partidos. “A necessidade de conquistar o poder aproximaram-nos do centro”, explica Paulo Victor Melo. Ao ponto de hoje ser difícil posicioná-los na dicotomia estrita da direita e da esquerda quando se confrontam, como por estes dias, em eleições. “Os eleitores não ligam a isso”, diz Adriano Oliveira, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife. Os eleitores anti-PSDB acusam o partido de Aécio Neves de “ser a favor do baixo crescimento e do desemprego”, enquanto os adeptos do PSDB tentam colar ao partido de Dilma os anátemas “da corrupção ou o de trabalhar apenas para os pobres”, diz, recorrendo a uma imagem simplificadora, Adriano Oliveira.

Chegado primeiro ao poder do que o seu rival histórico, o PSDB cumpriu nos mandados de FHC a condição prévia que tinham considerado prioritária: o combate à inflação. O Plano Real pôs fim a uma série de tentativas desesperadas que vinham da década anterior, quando José Sarney foi presidente, e fez recuar a inflação de uns estratosféricos 916% ao ano para 12,53%. Mas, como o período registou um baixo crescimento económico e desemprego alto, as suas promessas de transferência de rendimento ficaram além do prometido. Como durante os seus oito anos de poder FHC desregulamentou a economia, impôs restrições aos gastos públicos, recorreu a métodos clássicos do liberalismo para controlar o câmbio e a inflação e, principalmente, se decidiu a emagrecer o estado com a privatização de companhias como a Embraer ou a Vale do Rio Doce (um processo que ficaria conhecido como a “privataria tucana”), o PSDB saiu do poder em 2002 com o rótulo de partido de direita e ao serviço dos interesses do capital.

Lula combateu esse legado na campanha que disputou com José Serra, que tinha sido ministro da Saúde de FHC, e insistiu na necessidade de reparar a herança histórica da pobreza e da exclusão social. Mas perante o avolumar das ameaças de organismos internacionais que degradaram o “risco Brasil” à medida que Lula subia nas sondagens, o candidato do PT viu-se forçado a um compromisso com o mercado. Numa “Carta Aberta aos Brasileiros” datada de Junho de 2002, Lula prometia cumprir os contratos internacionais, manter a inflação controlada, lutar pelo superávite primário (saldo positivo no orçamento do Estado) e apostar no crescimento. “Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle”, prometia Lula. Um ano mais tarde, uma parte da bancada do PT recusa-se votar a reforma da Segurança Social e acaba expulsa – a deputada Heloísa Helena acabaria por formar o Partido Socialismo e Liberdade, PSOL.

Lula explicaria mais tarde a ortodoxia monetária que o levara a conservar o “tripé macroeconómico” criado pelo seu antecessor. Em 2006, em vésperas de ser eleito para um segundo mandato, afirmou: "Eu nunca fui esquerdista. Quando alguns companheiros meus americanos, europeus, me chamavam de esquerdista, aqui no Brasil eu era chamado de agente da CIA pelo Partido Comunista Brasileiro e de a muleta da ditadura pelos trotskistas". Ao desistir de reclamar a renegociação da dívida externa e de quebrar laços com o FMI e ao aproximar o seu discurso do centro, Lula aproximou o partido da classe média. O sucesso dos seus programas sociais, que FHC lançou mas a governação do PT ampliou, tornaram-no imbatível nas regiões mais pobres, ao mesmo tempo que se consolidava no sudeste do Brasil onde as classes médias dominam.

A migração dos dois partidos para posições mais ao centro, percurso que as últimas eleições acentuaram, nota-se no posicionamento político dos seus líderes principais. Dilma, que passa pela luta armada e pela militância no PDT de Brizola é hoje mais centrista que uma boa parte dos quadros do PT. O seu ideário baseia-se muito “no trabalhismo e na aposta nas empresas nacionais” que fazem parte desse legado, explica Paulo Victor Melo. Já Aécio é para este investigador um representante da ala mais à direita do PSDB. “Ele está na mesma posição de Geraldo Alkmin (reeleito governador de São Paulo), mas à direita de José Serra [candidato à presidência em 2002 e em 2010] e de FHC”, acrescenta o investigador.

Nas grandes questões políticas, porém, “os dois partidos têm a mesma agenda”, diz Adriano Oliveira: não põem em causa os programas sociais, defendem a estabilidade macroeconómica e são favoráveis, em doses diversas, de concessões a privados em áreas como as infra-estruturas de transporte ou da energia. E ambos recusam o que o filósofo Marcos Nobre designa por “pemedebismo”, a “cultura política herdada dos anos 80” que cobiça o controlo do estado em favor de interesses oligárquicos ou em classes de poder organizadas no seio do PMDB. Para Marcos Nobre, quer o Plano Real quer as políticas sociais de Lula foram respostas a essa cultura política larvar que ainda resiste nos estados mais remotos do país. Mas o poder do PMDB no Congresso é tão grande que quer FHC quer Lula quer Dilma tiveram de se aliar e de fazer concessões a esse partido-esponja, capaz de absorver todas as ideologias em defesa dos seus interesses.

Sendo ambos centristas e partidários de um ideário de consenso sobre questões de regime, PT e PSDB podem ser ameaçados por fenómenos como os de Marina Silva, mas as suas máquinas partidárias e a defesa de projectos políticos consolidados foram até agora capazes de afastar terceiras vias. Mais amigos dos pobres ou mais amigos da classes A e B, mais nacional-desenvolvimentistas ou mais defensores das regras de mercado, com mais ênfase no crescimento ou na redistribuição, PT e PSDB conseguem afirmar-se num mapa político que na esfera do Congresso ou dos estados se apresenta pulverizado, caótico e fulanizado.

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