Siza na Escócia
Sabemos de outras “estrelas” de arquitectura, do seu enorme egocentrismo. Siza envaidece-nos com a sua humanidade
Assim que Álvaro Siza entra no auditório da Glasgow School of Art, a sala repleta de estudantes e professores fica em silêncio absoluto. Estamos no novo edifício projectado por Steven Holl, onde funciona a escola de design. Tínhamos acabado de visitar a obra-prima de Charles Rennie Mackintosh, que ardeu parcialmente no dia 23 de Maio, do outro lado da rua. A emoção ainda é grande. Visitamos a ala “neo-gótica” que escapou ao incêndio, guiados pelo director da escola de arquitectura. Christopher Platt era estudante quando Siza fez aí uma conferência em 1981, na primeira vaga da difícil aproximação da arquitectura portuguesa ao Reino Unido.
Com capacete e colete fluorescente, Siza parece estar a visitar uma das suas muitas obras. O edifício está agora praticamente vazio e a administração da escola está a ponderar o que fazer. A biblioteca, a visionária peça central da segunda fase do edifício, ardeu completamente. O consenso é que deve ser feita uma recuperação rigorosa do que existia mas há muitos caminhos para lá chegar.
O programa em Glasgow é complementar ao motivo da visita de Siza e do grupo português à Escócia: uma apresentação na Edinburgh School of Architecture promovida pela Architecture Education Foundation; e a primeira conferência Isi Metzstein patrocinada pela Royal Scottish Academy, em homenagem ao arquitecto desaparecido em 2012, a ser proferida por Álvaro Siza.
Na escola de arquitectura, Luís Urbano apresenta duas curtas-metragens que realizou – a muito premiada Sizígia e A Casa do Lado; Sergio Fernandez elabora sobre a Casa de Caminha, de que é o autor, e é o objecto do segundo filme; eu falo sobre Siza; e Siza no fim comenta, sob o entusiasmo e a moderação de Samuel Penn, da Architecture Education Foundation, e Bruno Silvestre, arquitecto português sediado em Londres.
No contexto britânico, a relação da arquitectura e do arquitecto com a sociedade é diferente da continental e particularmente da portuguesa. A tradição é o ar que se respira e a actividade do arquitecto é entendida num quadro essencialmente empresarial. O high tech, nas suas várias manifestações contemporâneas, é uma resposta extremada a essa presença constante da tradição, mas funda-se também na tradição de ”ferro e vidro” que arranca no Crystal Palace. O conservadorismo e a excentricidade são inextricáveis na sociedade britânica, o que cria uma linguagem seguramente mais intransponível que o inglês.
A abordagem portuguesa reflecte a Europa continental com o efeito poético do sul. Não compreende o peso da tradição nem a fuga para a frente do experimentalismo tecnológico. Por isso, demorou tempo a impor-se. No contexto britânico não é simples compreender o cruzamento de preocupações contextuais com a arquitectura moderna que está na origem da arquitectura portuguesa contemporânea.
Siza conseguiu romper essa barreira, muito maior que a da língua. Na primeira conferência Isi Metzstein, no auditório da Universidade de Edimburgo, a lotação esgotou em pouco tempo. Siza mostra essencialmente o Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre, o que é mais do que suficiente. No fim recebe, de surpresa, uma medalha da Royal Scottish Academy.
Mesmo com o cansaço das viagens e dos jantares, Siza fala bem. Canaliza o poder de abstracção que é obrigatório para fazer arquitectura. Quando fala sobre a sua obra e sobre arquitectura, Siza parece imune ao contexto; fala do essencial, também do episódico, tem sentido de humor, é de uma comovente humanidade.
Sabemos de outras “estrelas” de arquitectura, do seu enorme egocentrismo. Siza envaidece-nos com a sua humanidade.
“O maior arquitecto do mundo”, repetem os escoceses. Em Edimburgo, como em Glasgow, somos recebidos com enorme simpatia. Falam-nos das rivalidades entre as cidades; falamos dos resultados do referendo; provamos a cozinha local em restaurantes animados; experimentamos a noite escocesa e a brutal correria de adolescentes em permanente punk revival.
O grupo português está feliz. Os nossos amigos escoceses não parecem muito informados sobre as terras lusas, mas há sempre o Siza.
No final da sessão na Glasgow School of Art, Siza comenta as intervenções do grupo, conta histórias de Portugal no 25 de Abril, responde a perguntas, posa para fotografias.
Visitamos, por fim, o edifício de Steven Holl que, coitado, tem a competição fronteira da obra maior de Mackintosh. Dentro da caixa esverdeada e pacífica faz piruetas, atravessa cilindros, balança corpos de escadas. Mas face à presença da Glasgow School of Art, mesmo ardida e transformada em estaleiro, é quase pueril o esforço.
Ou talvez seja o conservadorismo-excentricidade a impor-se em nós…
Siza guarda-nos mais surpresas pela frente, prémios, etc. Mas devemos reportar claramente: com capacete e colete fluorescente, visitando a Glasgow School of Art em recuperação, os astros da arquitectura alinharam-se.