Na Amadora, a BD salta para o ecrã e a tradição do papel ainda é o que era
25 anos de Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora têm como convidados Batman e Mafalda, mas é o presente e o futuro da arte que está no centro do evento que começa esta sexta-feira.
O Fórum Luís de Camões, na Amadora, recebe até 9 de Novembro autores e leitores para uma festa de 25 anos que coincide com os 50 anos de Mafalda, de seu cognome A Contestatária, e dos 75 anos de Batman, homem que só é super no seu símbolo, o morcego que espelha o lado lunar do monstro que temos em nós. Mas entre as presenças de autores muito cobiçados pelos caça-autógrafos (o ilustrador e argumentista norte-americano Joe Staton e sua ligação ao universo do morcego é um deles) e de novidades como a espécie de biblioteca central onde se pode ler um ano editorial português de BD, há uma exposição central que tenta abraçar todo um mundo.
Galáxia XXI: O futuro da banda desenhada é agora, comissariada pelos jornalistas Sara Figueiredo Costa e Luís Salvado, é a concretização de uma conversa de anos que se coaduna com a data redonda do festival para gerar reflexão. “O que é a BD hoje, em 2014, na sociedade de informação e quando os suportes de acesso a ela deixaram de ser apenas o papel”, resume Nelson Dona, director do AmadoraBD. Isto num momento em que a ilustradora Joana Afonso, cuj’O Baile (Kingpin Books) recebeu o Prémio Nacional de BD 2013 de Melhor Álbum e Melhor Argumento de Autor Português, é foco de uma exposição em três núcleos – desenhadora, livro e argumentista (Nuno Duarte) - e é a primeira mulher a desenhar o cartaz do festival. Também ela tem 25 anos.
“Num momento em que o país também está a viver um período de viragem que nos exige reflexão sobre o que somos e para onde vamos, parece-me lógico aplicar esse raciocínio ao estado da arte da BD”, explica Luís Salvado. Tanto ele quanto Nelson Dona e Sara Figueiredo Costa falam das possibilidades que se abriram na última década graças à sempiterna evolução tecnológica, em particular em termos de auto-edição com qualidade, das facilidades de difusão e acesso via Internet, da ausência de intermediários, do desenho exclusivamente no computador e dos produtos “híbridos”, como categoriza Salvado, “a BD que só pode existir no digital”, completa Sara Figueiredo Costa. “Já há autores a trabalhar só para o ecrã. O traço é dele, mas a forma como as vinhetas vão surgindo, como os elementos gráficos vão surgindo só é possível no ecrã”, nos tablets e computadores, e não é animação. É outra coisa.
E tal como esta “democratização imensa” que gerou “potencialidades que nunca houve na história da BD - temos autores portugueses a trabalhar para a Marvel sem saírem de cá. Isso era impossível há dez anos -”, como lembra Luís Salvado, permitiu que os nichos se multipliquem, também criou ecossistemas onde podem florescer. “Permitiu a sobrevivência de uma série de projectos editoriais com qualidade para estarem à venda em livrarias que há 15 anos não teriam como manter-se” como a portuguesa El Pep, exemplifica a comissária, circulando entre os espaços da Galáxia XXI.
Ali convivem oito núcleos sobre os grandes mercados dos EUA (em que há portugueses como Daniel Maia e Filipe Andrade a trabalhar) e do Japão, os novos suportes em ecrã, as novas distribuições como a da colombiana Powerpaola ou do brasileiro Alex Vieira, os trabalho colectivos via web como o que faz a portuguesa Chili com Carne ou a italiana Canicola, ou o efeito cinema, do Tintin de Spielberg e Os Vingadores à Palma de Ouro de Cannes A Vida de Adéle ou Gainsbourg, baseados em novelas gráficas. E o incontornável colosso franco-belga, “um mercado que continua a ter uma espécie de efeito de validação para o prestígio de um autor”, diz Sara Figueiredo Costa, que espelha que, ao lado das Marvel e DC americanas há ainda e sempre um Obélix a resistir. “Astérix entre os Pictos foi o livro que mais vendeu em França em 2013, à frente dos três livros de As Sombras de Grey”, lembra Salvado.
E se o desenho salta para o ecrã ou nasce nele, também há o regresso ou continuação da tradição, através da impressão artesanal, da serigrafia, da linogravura. “Uma tendência que atravessa o mundo”, diz Sara Figueiredo Costa, e que nos conteúdos oscila entre a idade adulta e o individual. A influência desta pulverização do mundo em suportes e acesso não é tão permeável a fenómenos como a pirataria, considera Luís Salvado, porque a BD só na última década se digitalizou de forma significativa, mas nas temáticas o comissário fala da contínua influência americana, desde a década de 1980, “num pendor cada vez mais adulto” das histórias e dos leitores. “Há uma distribuição etária muito maior entre os leitores de BD”, postula Luís Salvado, “até porque o preconceito em relação aos leitores de BD já se esbateu”. Os nerds a caminho do domínio mundial, já instalados no mainstream.
Nelson Dona acrescenta a sua pitada. Defende que o que se passa na BD é similar ao que nos últimos dez, 15 anos acontece “na história da arte em geral, mas sobretudo nas artes narrativas como a literatura, o cinema” – “a predisposição do leitor para se relacionar com obras intimistas, muitas de carácter autobiográfico, que relatam histórias de pessoas normais e não seres extraordinários”. “Esta normalidade”, ressalva, “não é uma invenção dos últimos anos, mas marca o universo da BD contemporânea e que provavelmente tem a ver com essa relação mais directa do autor com o leitor e”, opina, a globalização “leva a que se procurem as coisas mais individualizadas e com as quais se sentem identificadas.”
A reflexão deixa espaço para uma parede de autógrafos coleccionados ao longo destes 25 anos, de celebrações dos premiados do ano passado como o cartoonista Henrique Monteiro (o autor do primeiro-ministro tostado sobre uma toalha-Portugal à beira mar plantada) ou a ilustradora Catarina Sobral e de uma mostra em 3D - Matthias Picard e o seu Jim Curioso (Polvo) com sala escura de consumo obrigatório com os respectivos óculos. O evento, que este ano tem um orçamento de 510 mil euros, segundo a Lusa, contempla ainda uma feira do livro, um tributo ao Surfista Prateado (Prémio Nacional de BD 2013: Clássicos da Banda Desenhada) com a rara intervenção de Moebius nos comics americanos numa história partilhada com Stan Lee, da Marvel, e, claro, Mafalda.
Numa sala laranja, Gui está de lápis em riste sob o olhar da irmã mais velha, garatujas já espalhadas pelo rodapé das paredes. Aos 50 anos, Mafalda tem direito a uma “exposição de carácter mais lúdico”, também porque se trata de um autor – o argentino Quino – “cujos originais quase não existem e porque é uma personagem com uma dimensão universalista e que se circunscreve a um período da história, os anos 1970”, diz Nelson Dona. Mas, frisa o responsável, “o festival tem tido propostas de leitura filosófico-políticas e a Mafalda é isso: no momento sócio-económico em que vivemos, as perguntas da Mafalda são questões que nos colocamos novamente”.