Na Amadora, a BD salta para o ecrã e a tradição do papel ainda é o que era

25 anos de Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora têm como convidados Batman e Mafalda, mas é o presente e o futuro da arte que está no centro do evento que começa esta sexta-feira.

Fotogaleria
Nuno Crato, ministro da Educação, satirizado por Henrique Monteiro, Prémio Nacional de BD 2013: Melhor Álbum de Tiras Humorísticas Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Um dos núcleos dedicados ao trabalho de Joana Afonso, premiada em 2013 Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
A exposição central do AmadoraBD, ainda em montagem, é "Galáxia XXI: O futuro da banda desenhada é agora" Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Pedro Passos Coelho por Henrique Monteiro, Prémio Nacional de BD 2013: Melhor Álbum de Tiras Humorísticas Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
O AmadoraBD decorre até 9 de Novembro Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Trabalhos da ilustradora Catarina Sobral, Prémio Nacional de BD 2013: Melhor Ilustração de Livro Infantil Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
O festival recebeu em 2013 cerca de 30 mil visitantes Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Gui, o irmão mais novo de Mafalda, no núcleo dedicado à criação do argentino Quino Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
No piso -1 do Fórum Luís de Camões estarão as zonas de autógrafos, a área infantil e outras valências do festival Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Matthias Picard e o seu Jim Curioso (ed. Polvo) estarão numa sala escura de consumo obrigatório com os respectivos óculos Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Jim Curioso, Viagem ao Coração do Oceanofoi originalmene editado em 2012 pelas Editions 2024 Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Além da sala escura, o trabalho de Picard está à luz do dia para se detalhar o seu método de feitura Nuno Ferreira Santos

O Fórum Luís de Camões, na Amadora, recebe até 9 de Novembro autores e leitores para uma festa de 25 anos que coincide com os 50 anos de Mafalda, de seu cognome A Contestatária, e dos 75 anos de Batman, homem que só é super no seu símbolo, o morcego que espelha o lado lunar do monstro que temos em nós. Mas entre as presenças de autores muito cobiçados pelos caça-autógrafos (o ilustrador e argumentista norte-americano Joe Staton e sua ligação ao universo do morcego é um deles) e de novidades como a espécie de biblioteca central onde se pode ler um ano editorial português de BD, há uma exposição central que tenta abraçar todo um mundo.

Galáxia XXI: O futuro da banda desenhada é agora, comissariada pelos jornalistas Sara Figueiredo Costa e Luís Salvado, é a concretização de uma conversa de anos que se coaduna com a data redonda do festival para gerar reflexão. “O que é a BD hoje, em 2014, na sociedade de informação e quando os suportes de acesso a ela deixaram de ser apenas o papel”, resume Nelson Dona, director do AmadoraBD. Isto num momento em que a ilustradora Joana Afonso, cuj’O Baile (Kingpin Books) recebeu o Prémio Nacional de BD 2013 de Melhor Álbum e Melhor Argumento de Autor Português, é foco de uma exposição em três núcleos – desenhadora, livro e argumentista (Nuno Duarte) - e é a primeira mulher a desenhar o cartaz do festival. Também ela tem 25 anos.

“Num momento em que o país também está a viver um período de viragem que nos exige reflexão sobre o que somos e para onde vamos, parece-me lógico aplicar esse raciocínio ao estado da arte da BD”, explica Luís Salvado. Tanto ele quanto Nelson Dona e Sara Figueiredo Costa falam das possibilidades que se abriram na última década graças à sempiterna evolução tecnológica, em particular em termos de auto-edição com qualidade, das facilidades de difusão e acesso via Internet, da ausência de intermediários, do desenho exclusivamente no computador e dos produtos “híbridos”, como categoriza Salvado, “a BD que só pode existir no digital”, completa Sara Figueiredo Costa. “Já há autores a trabalhar só para o ecrã. O traço é dele, mas a forma como as vinhetas vão surgindo, como os elementos gráficos vão surgindo só é possível no ecrã”, nos tablets e computadores, e não é animação. É outra coisa.

Foto
Joana Afonso e Nuno Duarte (que recebeu o prémio de melhor argumento em 2013) fizeram de O Baile uma história com PIDE, zombies, pescadores e tradição popular portuguesa DR

E tal como esta “democratização imensa” que gerou “potencialidades que nunca houve na história da BD - temos autores portugueses a trabalhar para a Marvel sem saírem de cá. Isso era impossível há dez anos -”, como lembra Luís Salvado, permitiu que os nichos se multipliquem, também criou ecossistemas onde podem florescer. “Permitiu a sobrevivência de uma série de projectos editoriais com qualidade para estarem à venda em livrarias que há 15 anos não teriam como manter-se” como a portuguesa El Pep, exemplifica a comissária, circulando entre os espaços da Galáxia XXI.

Ali convivem oito núcleos sobre os grandes mercados dos EUA (em que há portugueses como Daniel Maia e Filipe Andrade a trabalhar) e do Japão, os novos suportes em ecrã, as novas distribuições como a da colombiana Powerpaola ou do brasileiro Alex Vieira, os trabalho colectivos via web como o que faz a portuguesa Chili com Carne ou a italiana Canicola, ou o efeito cinema, do Tintin de Spielberg e Os Vingadores à Palma de Ouro de Cannes A Vida de Adéle ou Gainsbourg, baseados em novelas gráficas. E o incontornável colosso franco-belga, “um mercado que continua a ter uma espécie de efeito de validação para o prestígio de um autor”, diz Sara Figueiredo Costa, que espelha que, ao lado das Marvel e DC americanas há ainda e sempre um Obélix a resistir. “Astérix entre os Pictos foi o livro que mais vendeu em França em 2013, à frente dos três livros de As Sombras de Grey”, lembra Salvado.

E se o desenho salta para o ecrã ou nasce nele, também há o regresso ou continuação da tradição, através da impressão artesanal, da serigrafia, da linogravura. “Uma tendência que atravessa o mundo”, diz Sara Figueiredo Costa, e que nos conteúdos oscila entre a idade adulta e o individual. A influência desta pulverização do mundo em suportes e acesso não é tão permeável a fenómenos como a pirataria, considera Luís Salvado, porque a BD só na última década se digitalizou de forma significativa, mas nas temáticas o comissário fala da contínua influência americana, desde a década de 1980, “num pendor cada vez mais adulto” das histórias e dos leitores. “Há uma distribuição etária muito maior entre os leitores de BD”, postula Luís Salvado, “até porque o preconceito em relação aos leitores de BD já se esbateu”. Os nerds a caminho do domínio mundial, já instalados no mainstream.

Foto
Astérix e os Pictos, editado em Outubro de 2013, foi o livro mais vendido em França nesse ano DR

Nelson Dona acrescenta a sua pitada. Defende que o que se passa na BD é similar ao que nos últimos dez, 15 anos acontece “na história da arte em geral, mas sobretudo nas artes narrativas como a literatura, o cinema” – “a predisposição do leitor para se relacionar com obras intimistas, muitas de carácter autobiográfico, que relatam histórias de pessoas normais e não seres extraordinários”. “Esta normalidade”, ressalva, “não é uma invenção dos últimos anos, mas marca o universo da BD contemporânea e que provavelmente tem a ver com essa relação mais directa do autor com o leitor e”, opina, a globalização “leva a que se procurem as coisas mais individualizadas e com as quais se sentem identificadas.”

A reflexão deixa espaço para uma parede de autógrafos coleccionados ao longo destes 25 anos, de celebrações dos premiados do ano passado como o cartoonista Henrique Monteiro (o autor do primeiro-ministro tostado sobre uma toalha-Portugal à beira mar plantada) ou a ilustradora Catarina Sobral e de uma mostra em 3D - Matthias Picard e o seu Jim Curioso (Polvo) com sala escura de consumo obrigatório com os respectivos óculos. O evento, que este ano tem um orçamento de 510 mil euros, segundo a Lusa, contempla ainda uma feira do livro, um tributo ao Surfista Prateado (Prémio Nacional de BD 2013: Clássicos da Banda Desenhada) com a rara intervenção de Moebius nos comics americanos numa história partilhada com Stan Lee, da Marvel, e, claro, Mafalda.

Foto
Moebius desenhou, Stan Lee escreveu - Parable, Marvel DR

Numa sala laranja, Gui está de lápis em riste sob o olhar da irmã mais velha, garatujas já espalhadas pelo rodapé das paredes. Aos 50 anos, Mafalda tem direito a uma “exposição de carácter mais lúdico”, também porque se trata de um autor – o argentino Quino – “cujos originais quase não existem e porque é uma personagem com uma dimensão universalista e que se circunscreve a um período da história, os anos 1970”, diz Nelson Dona. Mas, frisa o responsável, “o festival tem tido propostas de leitura filosófico-políticas e a Mafalda é isso: no momento sócio-económico em que vivemos, as perguntas da Mafalda são questões que nos colocamos novamente”. 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários