Brasil: a educação liberta

Lia Rodrigues (São Paulo, 1956) é figura de proa da dança contemporânea brasileira, mas é também referência para um trabalho crente na mudança individual. Na favela da Maré, no Rio de Janeiro, dirige o Centro de Artes da Maré, um lugar que é o encontro da dança com a educação.

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Lia Rodrigues descobriu que pode "militar de uma forma mais suave" Sammi Landweer

No seu trabalho há uma presença importante da educação que considera como fulcral para o desenvolvimento integrado do Brasil. Porquê?
A educação é uma chave em qualquer lugar, mas no Brasil, onde temos uma desigualdade muito grande, a educação é uma porta de entrada para observar e experimentar o mundo num um plano social, político, cultural, e inter-relacional. Não é nem a chave nem a solução, mas o caminho tem de ser por aí. A grande transformação de que o Brasil está à espera, e que falta fazer, é a diminuição das diferenças sociais. E isso parte da educação pública.

É uma escolha política?
No Brasil há pouquíssimos casos de qualidade na escola pública. Não é possível desligarmo-nos de um conjunto de coisas que fazem parte de um contexto social e económico. Existem decisões relativas a problemas de cada país que estão implicadas numa ordem mundial que as afecta grandemente. São questões que estão ligadas ao desenvolvimento do país. A educação é uma missão dura e complexa porque tem de lutar num contexto onde o consumo é desenfreado e onde os valores do mercado são da ordem do espectacular. O grande desafio é saber lidar com uma escolha que, sendo uma visão do mundo, permita trabalhar noutras direcções. Esse é um dos grandes desafios de hoje.

À escala do seu trabalho, como percebe os resultados alcançados pela educação como uma escolha?
Como ligar a dança e a arte contemporânea com a importância da educação? A favela da Maré tem 140 mil habitantes, e nós temos uma escola de dança com 300 inscritos. É uma escala mínima, mas é um diferencial importante. Há um núcleo de jovens com uma formação continuada que não querem necessariamente ser bailarinos, coreógrafos ou criadores. É, de uma maneira geral, uma sensibilização para as artes. Podem vir a ser só bons espectadores. A escola tem também esse lado de formação de público. Eles vão trazer os seus amigos e familiares, como as pedras que criam ondas num lago. Depois de dois anos dessa formação contínua, seis jovens do grupo inicial entraram na universidade pública. Isso é muito para nós. Uma menina entrou em Línguas, para fazer alemão e português, e todos os outros na universidade de dança. São meninos que chegaram bastante perdidos quanto às suas possibilidades. Essa é a questão, e é isso que tentamos fazer: como democratizar a possibilidade de opção?

Tem que ver com incutir o respeito por si mesmos e potenciar o impacto e a transformação que cada um pode ter?
Trabalhamos no sentido de os fazer protagonistas das suas histórias. Há uma autonomia e um entendimento de que cada pessoa pode conquistar um espaço que pode ser ampliado e, assim, contaminar outras pessoas. Não é só ter contacto com a dança e as artes, é pensar a favela da Maré de forma diferente e pensar como podem interferir nas mudanças que estão acontecendo agora e que vão continuar a acontecer nos próximos anos.

Há uma frase de Glauber Rocha num texto escrito nos anos 1970: “O país é grande mas criou pessoas maiores.” O trabalho a fazer é um trabalho de construção de cidadania e de cidadãos?
Sim. Por exemplo: há em alguns deles um desejo de se movimentarem. Um desejo que está em algum lugar do seu interior, mas não sabem bem se é através da dança contemporânea. É nesse sentido que a rede da Maré trabalha, onde a ideia de educação é ampla.

Quando fala de educação, concebe-a como sendo independente do sítio onde nasce e da sua condição social?
Sim, depois da minha decisão de trabalhar na favela aprendi muitíssimo relativamente a coisas que já praticava no meu quotidiano. Fui formando uma pedagogia mais livre ao ver bailarinos muito jovens com muito potencial. O encontro com a Redes fez-me olhar de forma mais ampla para a possibilidade que a arte tem de poder contribuir para criar esses horizontes. Não sendo a sua obrigação, possibilita a criação de uma capacidade de resistência que não é ir contra, mas sim de resistir a alguma coisa que o torne impotente de ser um agente transformador. Não podemos ser transformados de qualquer forma pelo que acontece à nossa volta.

É uma escolha pessoal?
Transmitimos valores e as pessoas irão trabalhá-los do modo como os entendem. O verbo actual é o verbo ter. É impossível não se fazer parte desse grande movimento de consumir e ter coisas. Mas há um outro verbo importante que é comunicar. Como podemos relacionar estas duas ideias para passarmos a ter um consumo de comunicar outras formas de estar no mundo. Pertenço à geração dos anos 1970, acreditava que era possível ter um Brasil sem desigualdades mas hoje tenho muito menos essa visão.

Percebeu que a escala na qual se tem de trabalhar é outra?
Isso mudou tanto a minha visão de um país socialista, com direitos iguais, que agora sei que é algo que não vai existir no mundo. Percebi que o modelo de perfeição faz com que eu trabalhe mais com os pés na terra, olhe à minha volta e veja o que posso fazer neste momento. Quando se sabe que não vai ser possível, não se desiste, eu apenas mudei a minha táctica de acção. É paralisante pensar que se luta contra uma coisa gigantesca. Eu considero que reorganizo o meu pessimismo de maneira a que ele não me derrube. É como diz o [romancista e filósofo] Ariano Suassuna: um pessimista é um optimista experimente.

É uma forma de compreender o próprio sonho?
Era um sonho tão grande que me sentia submergida e até militante de mais. Sinto-me mais livre desde que abandonei a militância guerreira. Descobri que posso militar de uma forma mais suave. Posso sonhar alguma coisa, com um país menos desigual, claro, mas agora sonho com os modos como a arte pode lidar com essa situação. O importante é o fazer concreto. É olhar e pensar que é possível. É acreditar em alguns valores e colocá-los em prática. Um espaço como o Galpão da Maré onde trabalho vejo-o como uma metáfora do Brasil. Estava destruído, foi preciso chamar alguém para recuperar o telhado, foi preciso arrastar ferros, fomos construindo em conjunto...

A escala do país tornou-se uma desculpa para a transformação?
Não posso dizer isso porque existem projectos pelo país inteiro que mostram que as reformas se fazem à escala do micro. E que mostram até que há diferentes formas de se fazer. Eu acho muito bacana a diversidade de jeitos que existem no Brasil para resolver as coisas cultural, social e politicamente. Até pela dimensão do Brasil, essa articulação de jeitos diferentes, é o jeito que pode, e é o jeito que dá certo.

Esse desejo de transformação encontra-o nas pessoas com quem trabalha, nomeadamente nos mais jovens?
Sim, encontro e de maneira diferente. Cada um vai transformar as coisas do seu jeito. Um artista só ocupado pelo seu trabalho está cumprindo uma parte no todo. A beleza do mundo está na diferença e nos jeitos de usar o que faz. É como os rios que correm de diversas maneiras mas no final fazem um enorme oceano.

Mas não há uma diferença entre o que se consegue e o impacto que se espera que venha a ter? 
A construção do Brasil é feita diariamente. Muitas vezes brincamos que o gigante ainda vai acordar e acontecer. Está escrito até no nosso hino. Eu já perdi essa imagem. Vamos despertando todos os dias, de diferentes formas, por pedacinhos. O que tem de ser enriquecido é o respeito que suporte a diferença. Um respeito que mostre que não se tem de ser igual ao outro, tem de se complementar. A articulação entre as diferenças é o mais interessante. Eu digo que administro diferenças, que administro crises. A questão é mantermo-nos em movimento para se poder suportar a crise. Eu sei que sendo chamada a coreógrafa das favelas, estou a dar voz a algo que não existiria no mediatismo onde vivemos. Isso pode ser pouco, para mim é muito importante.

Na militância entre as camadas mais jovens, há um desejo concreto de contribuir para a mudança?
Há coisa tão incríveis e tão interessantes que estão ligadas a novas formas de militar, diferentes da mobilização que havia no meu tempo. Observo a diversidade do Brasil e fico maravilhada em perceber como isso vai resultar em alguma coisa. O Brasil mudou muitíssimo desde a entrada do Lula. Saiu de um lugar e foi para outro. No que toca à questão racial e desigualdade, foi inaugurada uma fase nova. Ainda estamos no efeito Lula, que foi uma coisa importantíssima, mas há ainda tantas coisas para conquistar.

Não pode correr-se o risco de uma orfandade?
É impossível repetir as coisas. A configuração política nacional e mundial é outra. A força económica é outra. Há coisas que têm de ser mudadas e melhoradas. Nem dá para correr o risco de se pensar nessa força como uma armadilha. Há o risco reaccionário de andar para trás, de se fecharem alguns caminhos que estão sendo abertos e que trariam de volta a desigualdade.

A euforia na qual o país vive esconde a possibilidade de ressaca?
Não faço parte dessa euforia e não sinto que seja uma coisa na qual toda a gente viva. É muito mais uma euforia de quem lucra com isso. Não sei se a ressaca vai acontecer, mesmo com essa coisa fatídica de um dia estar no alto e depois se cair.

Que terapia aconselharia ao Brasil?
Não sei se o divã funciona.  São muitos anos [risos]. Não sei se psicanálise tradicional iria funcionar. Talvez propusesse uma outra abordagem mais corporal, mais jungiana.

 

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