Daniel Hui: "O cinema pode ser muito destrutivo, pode mentir-nos"

O realizador singapurense fala da memória e da história do seu país natal sob o signo de Roberto Bolaño e Chris Marker em Snakeskin, a concurso no DocLisboa

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Snakeskin é uma colagem de histórias pessoais verídicas que o realizador foi recolhendo entre amigos e conhecidos, sobrepostas e contrastadas à “História” oficial estabelecida pelo governo singapurense

O depoimento parece vago, mas tem tudo a ver com Snakeskin, a sua segunda longa-metragem, apresentada em estreia mundial no DocLisboa (última passagem sexta-feira, 24, às 19h15 no São Jorge). “O festival deu uma volta completa à minha carreira,” diz Hui para explicar o regresso ao Doc, um ano depois da sua longa de estreia, Eclipses, ter vencido o prémio Revelação - Snakeskin é, aliás, uma co-produção portuguesa que foi finalizada em Lisboa. Cidade muito diferente da Singapura natal do realizador, uma cidade-estado-república ainda jovem (fundada em 1819) e antiga colónia britânica, que, desde que recebeu a autonomia em 1959, tem estado sob o controlo de um único partido, o Partido de Acção Popular (PAP).

Hui explica que o filme nasceu precisamente da sua vontade de falar sobre este monolitismo governamental, mas que se transmutou aos poucos noutra coisa: numa meditação sobre a memória individual e colectiva, sobre o poder do cinema, que recorda muito Chris Marker mas que o realizador considera muito mais estar sob o signo do falecido romancista chileno Roberto Bolaño. “As suas narrativas são muito fragmentadas, ele pode tomar o lado de alguém com quem não concorda de todo e fazer-nos ver as coisas como essa pessoa as vê. Este começou por ser um filme feito a partir da minha visão e tornou-se num filme com muitas visões diferentes.”

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A memória pessoal e a memória colectiva
Snakeskin é uma colagem de histórias pessoais verídicas que o realizador foi recolhendo entre amigos e conhecidos, sobrepostas e contrastadas à “História” oficial estabelecida pelo governo singapurense e enquadradas por uma estrutura de falsa ficção científica. Hui: “Enquanto escrevia e recolhia histórias e montava imagens, nunca conseguia separar as minhas memórias das memórias colectivas e dos factos históricos. A memória pessoal e a memória colectiva [dos singapurenses] não são facilmente separáveis, porque desde sempre fomos inculcados com propaganda, e por isso a memória oficial do PAP sobre o que aconteceu tornou-se na nossa própria memória. As únicas “histórias alternativas” que existem são pessoas a contarem as suas próprias histórias, e muitas vezes contradizem-se umas às outras ... É muito difícil montar o quebra-cabeças da verdade. As pessoas lembram-se das coisas de maneiras muito diferentes.”

Se houvesse um tema central para o filme, seria mesmo essa dimensão narrativa que emprestamos aos movimentos históricos: “Temos de desconfiar sempre das histórias porque são muito poderosas, e quanto mais poderosas são mais desconfiados temos de ser. A nossa obsessão com histórias e narrativas é uma armadilha, a nossa noção de história já tem defeito à partida... Mas, ao mesmo tempo, acredito com muita força que os factos são factos. As coisas acontecem e não podem ser negadas. Porque é que aconteceram é que é muito mais difícil de explicar.”

Também por isso, Daniel Hui tem muita relutância em propor um rumo ao espectador, preferindo deixar que cada um leia em Snakeskin o que muito bem entender. “Tenho lutado com a autoridade do cineasta desde que comecei a fazer filmes,” diz. “Não quero ser o tipo na torre de vigia a dizer a toda a gente o que deve pensar. Isso mete-me muito medo. As memórias são importantes e o cinema é parte da nossa memória. Mas, ao mesmo tempo, o cinema pode ser muito destrutivo, pode mentir-nos. Há um momento muito significativo do filme em que lanço uma bobina de filme para a fogueira. Mostra que o tempo pode destruir tudo, incluindo o cinema, e também que precisamos literalmente de queimar o filme, precisamos de esquecer para nos voltarmos a lembrar, para recomeçar do zero...” 

 

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