Branco Sai Preto Fica: o cinema de urgência que vem do Brasil no DocLisboa
Docu-ficção sobre os subúrbios de Brasília é um dos grandes filmes do concurso do festival, que este ano vai também às ruas de Nápoles e à solidão dos Alpes.
Documental no tema, mas contaminado pela ficção ao ponto de ficarmos na dúvida sobre o que é real e o que é inventado, Branco Sai Preto Fica (São Jorge, segunda às 22h, e City Campo Pequeno, sexta 24 às 24h00) fala dos subúrbios de Brasília em 1986 e nos nossos dias – mas podia estar a falar de Ferguson, no Missouri, onde não há muito tempo um jovem negro foi morto por um polícia. O filme mostra o quotidiano, hoje, de duas vítimas de violência policial, na sequência de uma rusga a uma das festas ilegais que animavam as noites de Brasília de 1986 – rusgas onde a polícia não tinha pejo em gritar a quem quisesse ouvir “branco sai, preto fica”. Marquim ficou confinado a uma cadeira de rodas, Shokito tem uma prótese onde antes tinha uma perna. Adirley Queirós enrola esse lado numa narrativa de ficção científica godardiana vertente Alphaville, com um “investigador” enviado do futuro para recolher provas contra o Estado brasileiro, como se tentasse compensar a posteriori aquilo que, hoje, continua por corrigir.
“Sem provas não há passado”, diz-se a certa altura. E este é um filme que se afadiga a encontrar no presente essas provas do que foi em tempos, não apenas nas memórias daqueles que ainda o transportam no corpo. Nisso Branco Sai Preto Fica prolonga a narrativa central do Doc 2014 sobre o questionamento constante e a necessidade de manter sempre presente a memória do que ficou para trás. Ouve-se a dado momento falar da vontade de cometer um “acto de terrorismo contra o apartheid social” e este é, de facto, um filme mal-disposto, mal acabado, mal amado que quer ajudar a mudar as coisas – o verdadeiro cinema de urgência, se quisermos – e não se rala com gavetas ou catalogações, mesmo que saiba muito bem que está a dar cabo delas.
Só por isso, Adirley Queirós é, já, o cineasta mais estimulante de todo o concurso do Doc 2014, pela desfaçatez com que estilhaça e faz explodir formas, pela urgência fervilhante de ideias com que constrói o seu filme, com que o faz literalmente brotar dos subúrbios de Brasília, revelando as falhas do urbanismo planificado da capital brasileira e o modo como exclui uns e deixa entrar outros. “Branco sai, preto fica.”
Contemplação nos Alpes
Não é o único filme construído em integração com o local onde tudo se passa, como provam dois filmes de e sobre a Itália, de hoje mas também de sempre, mesmo que sem a urgência nem a garra de Adirley Queirós. Simone Rapisarda Casanova, italiano radicado no Canadá, recebeu o prémio de melhor primeira obra no concurso paralelo de Locarno com La Creazione di Significato (Culturgest, domingo às 19h30 e quarta 22 às 16h15). Mais tradicionalmente observacional, é um filme contemplativo, que acompanha atentamente o quotidiano de um agricultor dos Alpes italianos e, através do dia-a-dia do pacato Pacifico (é esse o seu nome) pelas montanhas, dos contactos com um potencial comprador dos seus terrenos, das visitas de investigadores sobre a história da Segunda Guerra Mundial, e dos dias de festa com vizinhos e familiares, tira um instantâneo de uma certa Itália intemporal, loquaz, convivial.
A mesma que vemos ao nível das ruas de Nápoles na estreia dos street artists locais Cyop & Kaf, Il Segreto (São Jorge, segunda às 19h, e City Campo Pequeno, quinta 23 às 21h). A dupla acompanha os miúdos que recolhem as árvores de Natal descartadas para queimar na tradição local das fogueiras de Santo António a 17 de Janeiro, e há algo de genuinamente fascinante no olhar veloz e truculento, “à altura de miúdo”, sobre o contraste entre a tradição arreigada e a cidade moderna, mesmo que o dispositivo não tenha arcaboiço para aguentar a duração de longa-metragem.