Arthur Russell: o futurista que veio do passado
Morreu, em 1992, na obscuridade, mas Arthur Russell era um visionário, movendo-se entre territórios – dos experimentalismos à pop dançante – com fluidez. Agora uma vintena de nomes presta-lhe homenagem em “Master Mix: Red Hot + Arthur Russell”.
Duas compilações lançadas em 1996, “The World Of Arthur Russell”, centrada em digressões ‘neo-disco’, e “Calling Out Of Context”, mais direccionada para canções intimistas idiossincráticas, davam-no a conhecer a toda uma nova geração, a que se seguiria a reedição de “World Of Echo”, álbum de 1986.
Desde então foi sendo citado como influência pelos mais diversos agentes pertencentes a distintas famílias musicais, dos LCD Soundsystem a Colleen, dos Daft Punk a James Blake, de Kindness a Nico Muhly, de Lindstrom a Final Fantasy. Seguiram-se mais edições, um documentário em torno da sua vida e obra e agora eis que surge a dupla compilação “Master Mix: Red Hot + Arthur Russell”, iniciativa de beneficência da organização Red Hot de luta contra a sida (da qual Russell foi uma das vítimas).
Violoncelista, cantor, director musical do The Kitchen, colaborador de figuras das vanguardas como Philip Glass ou John Cage, budista, estudioso de música oriental e frequentador da boémia nova-iorquina que girava em torno da cultura ‘disco’, Arthur Russell era uma personalidade multifacetada. São muitos os ângulos para entrar no seu mundo e daí talvez, paradoxalmente, por causa dessa variedade, nem sempre seja fácil chegar lá.
Nos anos 1970 e 1980 era uma personalidade singular, mesmo para os padrões da descomplexada cena artística de Nova Iorque.
Ele, que nasceu em Oskaloosa, no estado do Iowa, teve no piano o seu primeiro instrumento de eleição, mas por influência da mãe acabaria por dedicar-se ao violoncelo, embora na verdade se tenha revelado multi-instrumentista e também cantor. Na primeira metade dos anos 1970 mudou-se para São Francisco para se juntar a uma comunidade budista e para estudar música oriental.
Ali conheceu o escritor Allen Ginsberg, com quem actuou em sessões de poesia. Mas foi na Nova Iorque dos anos 1970 que deixou marca. Durante o dia experimentava novas possibilidades para o seu instrumento ao mesmo tempo que colaborava com figuras da vanguarda nova-iorquina (de Laurie Anderson a Rhys Chatham) e assumia a direcção musical do espaço The Kitchen, participando em performances com John Cage ou Glenn Branca.
No mesmo período quase se torna membro dos Talking Heads, impressionando David Byrne pela forma como trabalhava as orquestrações. Convites endereçados por coreógrafos de dança também não faltavam, acabando por compor música para trabalhos de John Bernd ou Diane Madden. Este era o Arhur Russell diurno, vivendo intensamente a vanguarda nova-iorquina.
À noite perdia-se nos clubes de música de dança como o Loft, Gallery ou Paradise Garage, vivendo intensamente a cena ‘disco’ então emergente, e tornando-se amigo de DJs e produtores como David Mancuso, Larry Levan, Walter Gibbons ou Nicky Siano.
Para ele a música ‘disco’ era território credível de descoberta. Aliás a pureza sonora fascinava-o, residindo ela nas melodias acetinadas dos Abba ou no minimalismo de Philip Glass. Para ele tudo era matéria recriável, fosse música sensual para a pista de dança ou sonoridades virtuosas de características académicas.
Em 1977 viria a formar o projecto Flying Hearts, muito marcado pelas influências ‘disco’, e no ano seguinte propõe a Nick Siano que gravem juntos sob a designação Dinosaur L. O resultado é “Kiss me again”, um longo tema marcado por dinâmicas rítmicas dançantes, onde encontramos a guitarra de David Byrne e o violoncelo de Russell. Através desse tema dava sentido ao seu sonho, aliando o sentido popular da música de dança com as divagações experimentais que nunca prescindira de aprofundar.
Como diria mais tarde David Byrne, Russell era alguém “dividido entre a vanguarda e o sonho de ser uma estrela pop como os Abba.” Nesse período de maravilhamento pela música de dança gravou vários discos através de outros pseudónimos como Loose Joints ou Lola, e foi um dos fundadores da editora Sleeping Bag.
Ouvindo a sua música da época percebe-se facilmente que era um visionário, alguém que utilizava o estúdio como instrumento e o colocava ao serviço de uma sonoridade expansiva, promovendo encontrados elaborados entre minimalismos rítmicos, envolvimentos melódicos provenientes da música ‘disco’ e técnicas e elementos do dub, num todo de atributos híbridos.
Essas incursões pela música ‘disco’ menos óbvia acabaram por se tornar na sua faceta mais conhecida, depois da sua morte. Mas nos anos 1980 compôs também muitas canções artesanais, temas para violoncelo e caixa-de-ritmos, estruturados de forma simples, mas de um lirismo e densidades dramáticas invulgares, com ele cantando intimamente por cima do manto instrumental.
Todas essas facetas acabam por estar expostas na antologia da Red Hot, através de recriações que tanto abordam a sua faceta dançante, como as apropriações mais melancolicamente folk.
É naturalmente uma compilação heterogénea, espraiando-se por dinâmicas dançantes de enlevo nostálgico (Blood Orange, Jose Gonzales) e por outras de tonalidades mais garridas e festivas (Robyn, Scissor Sisters, Oh Mercy). Os Hot Chip propõem uma odisseia expansiva de dez minutos, enquanto Sufjan Stevens, Cults ou Richard Reed Parry (Arcade Fire), na companhia de alguns cúmplices, reflectem as características mais singulares e intimas. A sua costela mais despojada é espelhada por The Revival Hour, Phosphorescent, Glen Hansard, Sam Amidon ou na magnífica ambiência sussurrada sugerida por Devendra Banhart.
Trata-se de mais um documento que nos revela que apesar de ser um virtuoso, Arthur Russell preferia a espontaneidade do gesto, o sentido de descoberta, o que ainda não foi enunciado. Não espanta que, enquanto vivo, raros tenham sido os que o souberam entender e até que nome atribuir à sua música, apesar de quando a ouvimos hoje parecer que sempre estivemos à espera dela.