É preciso salvar os dedos
É preocupante a situação da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva.
Mas vamos ao início. A FRESS foi criada em 1953, por decreto-lei, para o “estudo e defesa das artes decorativas portuguesas”, com bens e valores “oferecidos” por Ricardo Espírito Santo Silva. Esses bens constituem o património inicial do Museu-Escola de Artes Decorativas que ficou instalado no Palácio dos Condes de Azurara, no Largo das Portas do Sol, em Lisboa, ele próprio inserido na doação inicial. Para a realização dos fins a que se propõe, para além do museu e de duas escolas, os estatutos previam a abertura de uma série de oficinas “destinadas a estágios e aperfeiçoamento nas várias artes decorativas em que tradicionalmente se distinguirão os artífices portugueses e se julgue conveniente evitar que degenerem ou acabem.” Como “instituto de utilidade pública”, o seu financiamento seria assegurado pelo Ministério das Finanças, devendo estar inscrita no Orçamento do Estado "a verba necessária à manutenção do museu-escola e à organização das oficinas que hajam de ser criadas.”
Se recordo aqui os termos exactos em que a fundação foi criada e a sua natureza pública, é porque esse facto é importante para se perceber uma das condições para a doação, expressa no artigo 19 dos estatutos, “no caso da fundação se extinguir ou se desviar dos seus fins, por motivos estranhos ao fundador, os bens por ele doados voltarão à sua posse e propriedade e, se tiver falecido, reverterão a favor dos herdeiros.” Esta norma é perfeitamente compreensível na perspectiva da salvaguarda do projecto do fundador: se o Estado falhar no que é o seu compromisso, a doação fica sem efeito. Desde 2013 a fundação deixou de ter a natureza de fundação pública de direito privado e passou a ser totalmente privada e o artigo 19 pode ser o que a condena, na sequência do descalabro BES.
Hoje tudo ameaça a FRESS. Tendo perdido o seu principal patrocinador, a ameaça de asfixia financeira é real e, seja por extinção "simples" da fundação ou na sequência de um processo de insolvência, é evidentemente o património que está em risco. O pior que podia acontecer seria que a reversão para os herdeiros pudesse significar o seu congelamento e posterior dispersão por eventuais credores. Acresce que nenhuma instituição privada aceitará investir na fundação sem uma garantia mínima de que o seu património não virá a ser objecto de penhora ou pior. Neste sentido, por muito pequena que fosse a participação do Estado, ela representava uma rede de segurança que a fundação deixou de ter. Até porque, tanto quanto sei, o seu património não está sequer classificado.
E o que é esse património? O espólio do museu, evidentemente, mas não só. São também as 18 oficinas que representam o que de melhor se fez, e faz, na arte de trabalhar a madeira, os metais, os têxteis, o papel e as peles. Um pólo de excelência das artes decorativas, nacional e internacionalmente reconhecido, um saber tão raro e precioso quanto frágil, se não for devidamente protegido, como sempre que falamos de património imaterial. Não se trata por isso de “apenas” salvar a segunda maior colecção de objectos de arte decorativa do país, embora isso já fosse mais do que suficiente para nos mobilizarmos, mas de preservar uma arte e um saber único, o expoente máximo da manufactura em Portugal, com tudo o que isso representa como potencialidade em termos económicos mas também do ponto de vista cultural e social.
Em alturas como a que vivemos, existe uma tendência para o fatalismo, que justifica a cobardia e tenta desculpar a inação, tão bem retratada na expressão popular "vão-se os anéis, mas ficam os dedos". Só que no caso da FRESS importa salvar os dedos. Os dedos de mestres detentores de um saber único e secular. Numa altura em que tanto se fala da necessidade de reindustrialização e internacionalização, não perceber o potencial da FRESS num mercado cada vez mais sequioso de autenticidade e singularidade é, como diria, mais uma vez, o povo, "um tiro no pé".
Actriz e deputada do Partido Socialista