Eleições expõem a guinada conservadora da sociedade brasileira
Sondagens mostram que a maioria dos brasileiros se opõe à legalização do casamento gay, do aborto e das drogas leves. Bancadas evangélica, ruralista e militar crescem no Congresso.
Uma idêntica parcela de 79% dos eleitores opõe-se à liberalização das drogas leves, cujo “uso pessoal” até é tolerado por lei, apesar dos esforços do antigo Presidente Fernando Henrique Cardoso, do activismo do chamado “lobby dos maconheiros” – que a conservadora revista Veja classificou como um dos mais bem organizados do Brasil – e do facto de existirem mais de 1,5 milhões de consumidores diários (e mais de 8 milhões de consumidores frequentes) de cannabis.
E apesar de a realidade homoafectiva já ter sido “absorvida” e incorporada nas telenovelas da rede Globo, 53% dos brasileiros continuam a manifestar-se contra o casamento gay.
Estes são números retirados de uma sondagem encomendada pela TV Globo/Estado de São Paulo, e realizada pelo Ibope no início de Setembro, para medir a opinião dos eleitores sobre uma série de temas sociais. Um outro inquérito, do instituto Datafolha, para aferir a escala ideológica do eleitorado, teve resultados semelhantes em questões designadas a provar (ou desmentir) o pendor mais conservador da sociedade: 82% dos inquiridos consideraram que as drogas devem permanecer proibidas, “pois toda a sociedade sofre com as consequências”; 86% concordam que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores” e 60% consideram que “a maior causa da criminalidade é a maldade das pessoas”.
Paz e amor?
Mas então o que é feito do cliché do “povo de paz e amor”, cordial, solidário e camarada, aplaudido pela sua malandragem, as suas garotas sensuais e inspirações musicais? Os resultados demonstram que a imagem de tolerância, abertura e descontracção, que costuma vir associada aos brasileiros, não corresponde exactamente à realidade: os inquéritos mostram que a maioria assume posturas bastante conservadoras em relação a comportamentos que, ironicamente, são tão “comuns” no quotidiano que se pensaria serem aceites e toleradas pela sociedade – como a prática do aborto ou o consumo de marijuana.
O paradoxo foi explicado pelo sociólogo Valter Silvério, da Universidade Federal de São Carlos, ao jornal El País, como um reflexo da busca brasileira pelo “politicamente correcto”. Ao PÚBLICO, o historiador Lincoln Secco, professor da Universidade de São Paulo e autor do livro A História do PT, destaca a “dupla moral” que é possível encontrar numa grande parcela do eleitorado: “Publicamente favorável a causas ditas progressistas mas que continua a ser conservador”.
A dissonância, continua, é reveladora de “uma sociedade em transição”. “Depois de três mandatos do PT, houve um grande rearranjo das camadas sociais. Um contingente populacional, por meio do aumento de rendimentos, passou a ter acesso a mais veículos informativos, e trouxe para a arena política os seus comportamentos, que muitas vezes chocam com os valores instalados, provocando uma certa reacção conservadora”, constata.
Essa dicotomia entre o liberalismo e o conservadorismo, observa Secco, não respeita a tradicional linha divisória de direita e esquerda – “Esses não são os melhores parâmetros para avaliar o carácter progressista em termos comportamentais”, considera. Porque, por exemplo, o grande eleitorado conservador, do Sul, Sudeste e Centro oeste do país, “não é necessariamente contra as pautas progressistas comportamentais”, distingue. Ou porque, em várias denominações evangélicas, tidas como muito conservadoras, “há quem aprove comportamentos progressistas que os católicos rejeitam” absolutamente.
Congresso mais conservador
A “tendência” conservadora da sociedade ficou patente na votação da primeira volta eleitoral, no passado domingo, que ampliou o número de deputados que compõem a chamada bancada evangélica do Congresso – e ainda fez crescer de forma significativa, segundo um levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, o número de militares, religiosos, ruralistas e outros segmentos mais identificados com o conservadorismo.
“O novo Congresso é, seguramente, o mais conservador do período pós-1964”, disse o director daquele departamento, António Augusto Queiroz, ao jornal Estado de São Paulo. A nova configuração da Câmara de Deputados, completa a Folha, “deve dificultar o debate de leis liberalizantes, como a legalização do aborto e das drogas, e da pauta ambiental e indígena”.
A Frente Parlamentar Evangélica cresceu 14% e contará em 2015 com 80 membros. O deputado federal com mais votos em todo o Brasil (1,5 milhões), Celso Russomanno, pertence ao Partido Republicano do Brasil (PRB), a sigla ligada à Igreja Universal do Reino de Deus, cuja bancada dobrou de 10 para 20 deputados.
Os ruralistas da Frente Parlamentar da Agropecuária, que nesta legislatura travaram a discussão do código florestal, também aumentaram o seu núcleo duro para 70 deputados, com outros 200 eleitos comprometidos com as suas causas — que passam pela oposição à demarcação de novas zonas indígenas e ao combate ao trabalho escravo. E a chamada “bancada da bala”, assim denominada por ser constituída por ex-militares e polícias, defensores da política de “disparar primeiro e perguntar depois” e propensos a considerar que “bandido bom é bandido morto”, reforçou a sua presença legislativa tanto ao nível federal como estadual (que é o nível com mais competências em matéria de segurança). Segundo o portal Terra, o número de ex-polícias eleitos deputados cresceu 25%, para um total de 55 (40 estaduais e 15 federais), quando em 2010 eram 44.
O líder e expoente máximo da bancada da bala é o ex-militar Jair Bolsonaro, um homem polémico que diz que “a maioria dos gays é fruto do consumo de drogas”, que é a favor da pena de morte com a cadeira eléctrica e da “limitação” da procriação dos mais pobres e contra a investigação dos crimes de tortura e morte da ditadura pela Comissão Nacional da Verdade. O ultra-conservador, candidato pelo Partido Progressista (!), recebeu 460 mil votos: foi o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro. Bolsonaro não esconde a sua ambição de presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso, o cargo ocupado pelo igualmente controverso pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC), que foi reeleito apesar das investigações da justiça por crimes económicos e das suas declarações racistas, misóginas e homofóbicas.
Retrocesso
Será que esse crescimento de evangélicos, ruralistas e militares — que tem como reverso da medalha uma diminuição do espaço ocupado por mulheres e minorias, ou por sindicalistas e activistas de causas sociais ou ambientais — é sintomática de uma sociedade que pode ser definida como racista, ou preconceituosa, ou violenta, ou machista? Lincoln Secco responde que “esses são, sem dúvida, elementos que a caracterizam. Mas a sua auto-imagem é oposta a isso”. Ou seja, apesar da ideia de uma certa tolerância com a libertação sexual, a violência contra as mulheres continua a ser tremenda; apesar de a lei prever tolerância para quem for encontrado com doses de cannabis “para uso pessoal”, a polícia continua a deter maioritariamente homens negros com baixa escolaridade, que são “flagrados” na via pública com pequenas quantidades de droga e desarmados.
Sem desvalorizar a sua importância, o professor da Universidade de São Paulo ressalva todavia que existe um fenómeno de “sobre-representação” das bancadas ultraconservadoras, que “são muito organizadas”, enquanto os defensores das causas gay ou os representantes dos direitos dos indígenas sentem maiores dificuldades para “encontrar um abrigo dentro dos partidos”.
E os comentadores políticos alertam para uma outra incongruência, que tem a ver com as particularidades do sistema político brasileiro de alianças e coligações: o aumento de deputados de perfil vincadamente conservador não implica necessariamente uma viragem à direita do Governo do país. Aliás, é preciso notar que grande parte deles integrou a base aliada do Partido dos Trabalhadores, que é definido como um partido progressista, e deverá seguir ao lado da Presidente Dilma Rousseff (que tem todos os pergaminhos de uma mulher de esquerda), em caso de reeleição.
Apesar da guinada conservadora, os grandes partidos PT, PSDB e PMDB (centro-esquerda e centro-direita) mantiveram a sua maioria no Congresso. Para garantir a governabilidade e cumprir a sua agenda, o futuro ocupante do palácio do Planalto — seja Dilma, seja Aécio Neves, do PSDB — terá de aceitar compromissos com os evangélicos, ruralistas e militares. “Seguramente vai haver um retrocesso em relação às pautas sociais e de mulheres”, estima o director do Departamento intersindical de assessoria parlamentar, António Augusto Queiroz, já que “houve uma redução de quem defendia essas causas no parlamento e praticamente dobrou o número de quem é contra”. O mais provável é que projectos de lei para a criminalização da homofobia ou legalização do casamento gay continuem a marinar no Congresso, e que as mulheres brasileiras continuem a abortar clandestinamente depois de 2015.