As duas agriculturas
Passando por cima de rigores que não nos deixariam saltar directamente do branco para o preto, sem considerar as diferentes tonalidades do cinzento, há, de facto e cada vez mais claramente, duas agriculturas no nosso país: a de regadio e a de sequeiro. A primeira, mais moderna, avançada, mais tecnológica, quase sempre competitiva e robusta, pratica-se apenas nos pouco mais de 500 mil hectares que beneficiam de regadio. A segunda, mais triste, mais penosa, mais ingrata e exposta, menos esperançosa, pratica-se nos restantes cerca de 3 milhões e 200 mil hectares que completam os 3 milhões e 700 mil hectares da nossa Superfície Agrícola Utilizada (SAU). Estas duas agriculturas determinam sistemas de produção que nem sempre estão separados. Em muitos casos, coexistem no interior de cerca de metade das nossas 300 mil explorações, que dispõem, em diferentes proporções, de terras e culturas de regadio e de sequeiro.
Infelizmente, salvo poucas excepções, só o regadio é visitado, mostrado, festejado e exportado. Só o regadio contribui para a imagem positiva que os portugueses têm actualmente da sua agricultura. Salvo excepções, só o regadio vai à feira, à televisão, entusiasma os avanços tecnológicos, as empresas de serviços, os investigadores, os técnicos e os investidores. E, na realidade, Portugal tem feito nesta área avanços notáveis que marcam definitivamente os anos que já temos de integração europeia.
Foi a água que modernizou as vinhas e os olivais, os pomares e a horticultura, protegida ou não por estufas, mas sempre regada. Foi a água que deu um formidável impulso modernizador ao nosso milho. É a água que põe à disposição dos agricultores muitas dezenas de opções de culturas alternativas, que lhes permitem seguir as preferências dos mercados e as necessidades do país, sendo competitivos, ainda que trabalhando com maiores custos, muito maiores consumos de factores de produção, e, por isso, com muito maior risco face aos imponderáveis do mercado e do tempo.
Entretanto, as terras e as culturas de sequeiro, que se estendem por 86% da SAU, continuam a viver a um ritmo muito menos acelerado, menos mediático e infelizmente, mais problemático. É certo que neste sector também existem bons exemplos. Houve agricultores que reagiram favoravelmente às alterações de enquadramento que foram inviabilizando algumas das utilizações tradicionais das terras de sequeiro, sobretudo nas de qualidade inferior, que, infelizmente, ocupam pelo menos dois terços da totalidade da área agrícola de sequeiro.
Ao longo dos últimos anos, foram-se sucessivamente abrindo e fechando oportunidades na agricultura de sequeiro, correspondentes a descontinuidades de orientação política.
Abriram-se oportunidades de florestação, sobretudo para espécies de crescimento lento, designadamente para quercíneas (sobreiros, azinheiras e carvalhos) que, sem os fortes apoios públicos disponíveis, se tornariam inviáveis; criaram-se oportunidades no contexto das medidas agro-ambientais, cuja aplicação a estas áreas é particularmente justificada. Infelizmente, responsáveis do passado, de vistas perturbadas, conseguiram anular e/ou reduzir drasticamente o seu impacto; abriram-se oportunidades de expansão do efectivo pecuário (designadamente com o muito expressivo aumento do número de quotas/prémios europeus para as vacas produtoras de carne).
Este acréscimo foi bem aproveitado por muitos agricultores que converteram em pastagens permanentes muitas terras antes dedicadas a culturas aráveis, como os cereais, que se foram tornando inviáveis. Curioso, e a registar para a História, é o facto de muitos dos nossos “sociólogos da agricultura” terem sido muito críticos dos apoios a culturas aráveis de sequeiro e agora continuarem a sê-lo das pastagens permanentes, que contabilizam, erradamente, no abandono agrícola!
Passando por cima de muitos episódios deste tipo, que a História se encarregará de corrigir, é para mim cada vez mais evidente que este enorme território problemático poderia e deveria ser melhor acompanhado, com mais atenção política, com medidas apropriadas à sua sustentabilidade produtiva. Seria mais do que justificado que assim acontecesse, quer porque o país precisa de produzir mais, quer porque os agricultores, para continuarem a sê-lo, precisam de condições mínimas de viabilidade, quer ainda, porque as regiões rurais, sobretudo as do interior, para sobreviverem, económica, social e ambientalmente, precisam de um tecido produtivo viável e durável. O que ninguém precisa é de soluções passageiras e de alterações permanentes.
As soluções existem mas exigem determinação e clarividência para a integração e execução de medidas de efeito múltiplo, que erradiquem as doenças letais que devoram as nossas florestas; que melhorem as nossas pastagens; que enriqueçam e protejam os nossos solos (designadamente contra a erosão); que travem a redução acentuada dos cereais de sequeiro e/ou o nosso efectivo ovino.
Tudo isto é possível. Não é preciso inventar nada. Basta ligar vontades, ciência, política e alguns meios materiais. Infelizmente, se nada for feito, o futuro punirá certamente uma grande parte dos agricultores portugueses, mas também a consciência dos que, menos atentos, não se deram conta do que poderia vir a acontecer. E não me venham dizer que não se pode, porque a UE não deixa. Se não se pudesse, já não haveria vinha nas encostas do Reno, na Alemanha, agricultura de montanha na maior parte da Europa ou agricultores na Finlândia.
Eng.º Agrónomo (ISA)