Como Nova Iorque inspirou o novo filme de Pedro Costa
O realizador português contou, no Lincoln Center, o seu caminho para chegar a Cavalo Dinheiro, o seu novo filme: a música e a poesia de Gil Scott-Heron, as fotografias documentais de Jacob Riis sobre os bairros miseráveis de Nova Iorque.
Mas é o próprio que a referencia. Por isso, quando o cineasta português é convidado para vir a Nova Iorque falar sobre o que esteve na génese de Cavalo Dinheiro, a ligação entre cabo-verdianos emigrantes em Portugal, personagens do filme, e a cidade que agora o recebe torna-se inevitável.
Cavalo Dinheiro chegou ao Lincoln Center pelas mãos do New York Film Festival (NYFF), fazendo parte da selecção oficial da 52ª edição do festival. Foi neste âmbito que Costa foi convidado para vir ao Walter Reade Theater, quarta-feira, para uma master class.
A ideia era ouvi-lo falar do caminho que o levou até este filme. A guiar a conversa estava Dennis Lim, director de programação da Film Society do Lincoln Center, que na noite anterior, ao apresentar a longa-metragem à audiência nova-iorquina, confessara que este teria sido o único filme do festival que já vira três vezes, classificando-o como “belo e desolador”. Para Lim, Costa é um visionário.
Antes de ser director de programação da Film Society, o programador fazia parte do comité de seleção do festival e já programara o trabalho de Costa noutros contextos. “O objectivo do festival é mostrar 30 dos mais importantes filmes do ano e não é sequer questionável a qualidade de Cavalo Dinheiro, é uma obra-prima. Não existe ninguém que trabalhe a imagem ou os actores desta forma. Em cada filme que concebe, Costa consegue dar mais um salto. E este é, sem dúvida, impressionante.”
Formas de salvação
Cavalo Dinheiro é o resultado de uma entrega de anos e por isso quando Pedro Costa começa a falar dos métodos de trabalho que seguiu, as palavras "experimentação", "pesquisa" e "repetição" surgem frequentemente no seu discurso. Como formas de inspiração, ou de “salvação”, como lhes chama, refere a fotografia e a música, onde aliás tudo começou.
As imagens que dão início ao filme são um conjunto de fotografias de Jacob Riis, ele próprio um emigrante que veio da Dinamarca para Nova Iorque nos anos 70 do século XIX e que começou a fotografar os emigrantes que viviam nos slums da cidade. Costa veio buscar essas imagens ao Museu da Cidade, no Upper East Side. “O trabalho documental de Riis tem este lado dos cidadãos aprisionados, mostra-nos como é que a outra metade vive”, explica o realizador, justificando que quando se debruçou sobre as fotografias, sentiu que tinha encontrado a peça que faltava. “Pedi ao museu para usar os negativos, porque acho que este universo pertence ao Ventura e a pessoas como ele.”
Ventura é a figura a que Costa regressa uma vez mais, um cabo-verdiano que partiu para Lisboa, e cuja vida acabou por ser destruída pela Revolução. Costa resume o 25 de Abril à audiência americana: uma revolução “charmosa”, que foi feita por jovens capitães e que falhou. “Se não tivesse falhado, não estaria a fazer este filme”.
Ventura é alguém que conheceu há 20 anos e com quem estabeleceu uma relação de amizade. Alguém que compara ao músico e poeta Gil Scott-Heron, por este também explorar a ideia de “não pertença”. Enquanto vagueava pelas memórias destes cabo-verdianos que deixaram o bairro das Fontainhas para ir viver em prédios de habitação social, Costa sentiu que queria fazer algo que se distanciasse deste novo lugar onde viviam, destas casas de paredes brancas com as quais não se identificavam e que constituíram o cenário do seu filme anterior, Juventude em Marcha.
“Comecei a pensar na Revolução como o primeiro momento da doença de Ventura. Queria confrontar a realidade do outro lado da Revolução, sem fantasiar, mas sabia quão obscuro ou difícil podia ser. Foi aí que surgiu Scott-Heron. Pensei que eles se pudessem encontrar, mesmo que fosse difícil criar um diálogo entre eles. Ventura poderia dizer um rap de Scott-Heron.”
Quando o músico faleceu, Costa teve um momento de crise: “Estive seis meses sem saber o que fazer, mas depois o Ventura contou-me esta história que o assombrava no Inverno, a história de um soldado que o tentou matar”. Esta imagem acabou por ser a base de uma longa cena num elevador, que Costa diz ter sido a primeira a ser filmada - “demorámos três meses a filmar e o resto foi construído a partir daí”. Mas antes de existir o soldado, existia a poesia de Gil Scott-Heron, a música.
“Não sei o que ficou disso, a voz? Talvez o momento em que as personagens posam [ao som de uma morna].” Foi nesse dia que Costa se cruzou com Vitalina, a mulher cuja história se entrelaça com a de Ventura. Nessa noite, depois de posar para a câmara, Vitalina cozinhou, os dois conversaram e o convite para colaborar no filme surgiu. “Ela é uma mulher muito especial, que tinha um lugar nesta história.”
Um filme que nasce deles
Esta ligação do realizador com os actores é algo que críticos, programadores e público referem como extraordinário e é aí que reside também a maior curiosidade relativamente à fórmula para lá chegar: “Não tenho um método específico para dirigir actores, aliás não acredito em representação e não os vejo como actores, nem como personagens. Normalmente estou só preocupado com a saúde deles, é quase como se a pergunta constante fosse: 'estão bem?'. Este filme é algo que nasce deles, eu só vou atrás das histórias ou das memórias. O mais próximo que tenho de um método é a rotina, a repetição com pequenas variações.” Depois há as limitações da produção, que também influenciam o trabalho. Costa fala de exaustão, de uma equipa de quatro pessoas e de estar confinado em espaços.
“A maior parte das minhas noites mal dormidas são a pensar sobre a falta de dinheiro, sobre a falta de um determinado objecto, não nas escolhas artísticas. Depois quando estou a filmar, parte tudo muito da pesquisa, de experimentar.”
Matthew Porterfield, o realizador americano que assinou I Used to Be Darker, e fã incondicional do legado de Costa, veio ouvir a master class e diz-nos que a conversa lhe trouxe alguma percepção sobre os métodos de trabalho que o cineasta português usa, sobre a sua forma de criar e sobre as decisões que toma durante o seu percurso. “Cavalo Dinheiro é um filme incrível, único e poderoso. E o compromisso que ele tem para com esta comunidade é de facto inspirador.”
Pedro Costa não esconde a ligação inevitável a estas pessoas, que descreve como amigos. “Foi um filme extremamente difícil de fazer. Ver o Ventura a sofrer, a falar sobre estes fantasmas, a reviver essas memórias, foi duro.”
É essa capacidade que Costa dá à audiência para estar com esta “personagem” que Haden Guest descreve como simultaneamente desconcertante e incrível. Para o director do Harvard Film Archive, que tem trabalhado muito próximo com o cinema português (é um dos curadores da iniciativa Harvard na Gulbenkian que este fim de semana começa em Lisboa), “este é um filme com uma verdade diferente, que aliás se vira para nós e nos questiona - que vozes são estas que recusamos ouvir? Que passado é este com que não nos confrontamos? Que fantasmas ignoramos? O filme é extremamente profundo a vários níveis. É um filme que está ligado a Portugal, mas que ressoa muito além da História. É algo que fica a assombrar-nos.”