Crónica de uma infecção: o caso da mulher que contraiu o ébola em Espanha
A forma como surgiu o primeiro caso no mundo de contágio pelo vírus do ébola fora de África mostra que, ao contrário do que se pensava, os países ocidentais não estão realmente preparados para lidar com uma ameaça de saúde pública como esta.
A história que se vai reconstituindo a partir das informações veiculadas pelas agências noticiosas internacionais e pela imprensa espanhola deixa transparecer falhas na capacidade de os países ocidentais lidarem com doentes com ébola nos seus territórios. Essas falhas, algumas das quais já tinham sido postas em evidência há dias em Dallas, nos EUA, tornaram-se agora igualmente evidentes num país europeu.
Recorde-se que, na segunda-feira à tarde, várias análises confirmaram a presença do vírus do ébola no sangue de uma mulher que tinha feito parte da equipa hospitalar, no Hospital Carlos III de Madrid, que tratara um missionário e médico espanhol ali internado com ébola. O missionário, que contraíra a doença na Serra Leoa (um dos países africanos mais atingidos pela actual epidemia), fora repatriado a 22 de Setembro e acabara por morrer a 25 de Setembro. A mesma mulher também tinha tratado um primeiro missionário espanhol doente, repatriado da Libéria e que morreu em meados de Agosto.
Segundo o que veio a público nas últimas horas, sabe-se que a mulher, cujo nome não foi revelado (tem cerca de 40 anos), tinha entrado por duas vezes no quarto do segundo doente durante os poucos dias em que esteve hospitalizado. A primeira vez foi para lhe mudar a fralda e a segunda, já após o óbito, foi para limpar e desinfectar o quarto. Das duas vezes, levava vestido o equipamento considerado indispensável segundo as normas internacionais neste tipo de situação: dois fatos, um por cima do outro, máscara, óculos, dois pares de luvas.
No dia a seguir à morte daquele missionário, a auxiliar de enfermagem foi de férias (as autoridades não especificaram para onde). Mas a 30 de Setembro, relata o diário El Mundo, começou a sentir-se doente (o período máximo de incubação do vírus é de 21 dias). Comunicou então aos serviços de saúde do trabalho de Alcorcón, nos arredores de Madrid, que tinha febre e que tinha recentemente tratado um doente com ébola. Mas só dias depois, na madrugada de segunda-feira (6 de Outubro) – e depois de a mulher ter insistido para ser testada – é que o hospital de Alcorcón efectuou uma análise ao sangue, enquanto a doente permanecia na enfermaria das urgências daquele estabelecimento, a uma cortina de distância dos doentes à sua volta – e não em isolamento, como afirma a versão oficial dos factos, pode ler-se ainda no mesmo diário espanhol.
Na madrugada de terça-feira, depois de um segundo teste ter confirmado o primeiro, a mulher foi transferida para o Hospital Carlos III – o único na zona habilitado para receber doentes com ébola (e onde ela própria trabalha).
Actualmente, a mulher está a ser tratada com soro proveniente do sangue de uma outra pessoa que contraiu o ébola (em África) mas que sobreviveu – soro que contém anticorpos eficazes contra o vírus. Para além dela, estão hospitalizados (ou em quarentena) o seu marido e mais um caso suspeito (os testes a uma terceira pessoa, uma enfermeira, deram entretanto resultados negativos). E o hospital madrileno já anunciou também que o estado de saúde das pessoas que trataram da mulher no primeiro hospital onde foi internada, bem como de todos os profissionais de saúde que estiveram em contacto com os missionários no Hospital Carlos III, também está a ser monitorizado.
A maneira como tudo aconteceu está a suscitar muitas dúvidas por parte de médicos, pessoal de enfermagem e cientistas. “Não percebemos como foi possível uma pessoa com um duplo fato e dois pares de luvas ficar contaminada”, diz uma cardiologista do Hospital Carlos III citada pela agência AFP.
Mais: ao Ministério da Saúde espanhol, que afirma que todo o pessoal que tratou dos missionários recebeu formação especial, uma colega da mulher doente rebate: “O único protocolo que tivemos foi um curso de 15 minutos para nos explicarem como vestir e despir os fatos.” Ora, é aconselhável uma formação de “pelo menos 48 horas” para tratar doentes com ébola, diz por seu lado, citado pela AFP, o infecciologista François Bricaire, do Hospital da Pitié-Salpétrière de Paris, acrescentando que a formação do pessoal da Cruz Vermelha enviado para as zonas afectadas pelo ébola em África dura oito dias.
Uma coisa é certa: é no momento de despir os fatos que os riscos de contaminação são os mais elevados – e é aí que poderá ter acontecido o contágio, “com uma pequena gota de líquido infectado a saltar do fato para a pele”, explica Jonathan Ball, virologista da Universidade de Nottingham (Reino Unido), também citado pela AFP. “Se as medidas de confinamento adequadas tivessem sido tomadas, isto não deveria ter acontecido”, acrescenta.
Há ainda a questão do lixo gerado pelos doentes com ébola: fezes, vómitos e sangue, que estes doentes perdem em grandes quantidades, são altamente infecciosos – e contaminam lençóis, fraldas, seringas, pensos (lembre-se que o ébola não se transmite pelo ar).
“É crucial perceber o que correu mal neste caso para evitar que torne a acontecer”, diz Ball.