Abriram-se os portões do Matadouro para deixar entrar a cultura
A noite da passada sexta-feira foi diferente em Campanhã, no Porto. Os habitantes da cidade assistiram à abertura de um espaço que há mais de 20 anos se encontrava fechado. O antigo Matadouro Industrial foi palco para A Santa Joana dos Matadouros.
Com serão marcado para as 21h30, os primeiros espectadores começam a chegar minutos antes, como é o caso de Arminda Pinto Vouga, que embora viva no Porto há muitos anos é a primeira vez que vê o Matadouro. Ainda assim, Arminda tinha ouvido falar do espaço e sabia que ele estava fechado há muito tempo. “Hoje, ao menos, está iluminado e estão a vir pessoas”, comenta. Veio sobretudo para ver a interpretação da neta, mas apoia a iniciativa cultural. “É bom para os artistas e é bom para quem mora aqui”, comenta.
Quem chega também minutos antes da hora marcada é Alvina Pinheiro, que teve conhecimento do projecto Cultura em Expansão através da Junta de Freguesia. Alvina está curiosa com o que se vai passar no interior do Matadouro, uma vez que a realidade que conhece é outra. “Conheci o Matadouro quando era novinha e havia muita miséria. Matavam-se aqui os bois e a gente vinha buscar o sangue para cozinhar e comer”, conta.
Aos poucos, o átrio do espaço vai-se compondo. Entre os presentes esteve Paulo Cunha e Silva, vereador da Cultura da autarquia, que explica ao PÚBLICO a ideia de levar a cultura a lugares menos previsíveis. “Este projecto já fazia parte do manifesto eleitoral, em que tínhamos a convicção de que a cultura não poderia ficar prisioneira dos territórios clássicos e devia expandir-se por toda a cidade e colonizar espaços de zonas mais degradadas, zonas que não fazem parte do itinerário fashion da cidade”, explica.
O projecto Cultura em Expansão estreou-se agora no Matadouro e conta com mais duas intervenções até ao final do ano, na Ilha da Bela Vista e na Pasteleira.
Na noite de sexta-feira, os interessados puderam assistir à rodagem de duas cenas do filme A Santa Joana dos Matadouros: Abertura de Portões, de João Sousa Cardoso, que contou com um elenco muito especial, uma vez que dele fizeram parte habitantes da própria freguesia de Campanhã. A participação dos campanhenses é, de acordo com Manuel Pizarro, vereador da Habitação e Acção Social, uma “ideia muito feliz”. “A cultura tem de fazer parte da nossa vida. Da nossa vida individual. Alarga-nos perspectivas, alarga-nos horizontes, podemos ver o mundo de outra forma e contribui para a nossa felicidade individual. Ao mesmo tempo, a cultural é muito identitária, tem a ver com as comunidades”, diz o vereador socialista.
Embora afirme que a população está receptiva ao projecto, Pizarro destaca que, “nesta matéria, é preciso fazer uma educação do público”. “Temos de ser persistentes, não podemos ter a ilusão de que uma iniciativa, por si só, vai construir um programa cultural, um hábito cultural”, salienta.
Da mesma opinião é Serafim Lopes, habitante de Campanhã que veio ao Matadouro apenas “para ver o que se ia passar”. O campanhense espera que esta intervenção cultural se realize com mais frequência para que as pessoas comecem a ir. “O pessoal daqui, na minha maneira de ver, é um bocado reservado, não ligam tanto as estas coisas. Mas, se começarem a fazer hoje, amanhã e depois, é uma maneira de cativar. Quem vem a primeira vez transmite a palavra aos outros e há sempre curiosidade”, comenta.
Pouco depois da hora marcada, dá-se início à acção. O cenário está montado e a população mistura-se com o elenco, já posicionado no amplo edifício, sentados e deitados no chão, representando os desempregados de uma fábrica. As bancadas preenchem-se e as filmagens iniciam-se. O conforto não é o de uma sala de espectáculo, mas a atmosfera é acolhedora. Os jogos de luz dos focos e do fogo mostram os rostos dos actores, os cobertores pousados na bancada e as paredes gastas pelo tempo. O público mostra-se atento a um espectáculo que mistura o cinema com o teatro, com o realismo sempre presente: o fresco da noite, o barulho constante da cidade e o ecoar das vozes no espaço.
Durante mais de uma hora e meia, A Santa Joana dos Matadouros permitiu aos espectadores participar numa experiência colectiva e assistir em directo à rodagem de um filme sobre a situação de crise. Os microfones e as câmaras vão sendo mudados de lugar a cada nova gravação. As falhas são apontadas por João Sousa Cardoso, o realizador, e as cenas voltam-se a filmar.
Entre os actores, um grupo de campanhenses destaca-se pelo sotaque carregado. Álvaro Cardoso é um deles, e fala ao PÚBLICO no final da sessão. “Viver A Santa Joana dos Matadouros é mexer com a gente, porque é uma realidade do nosso dia-a-dia”, diz. É isso também que João Sousa Cardoso quer destacar com este seu trabalho, inspirado em Bertolt Brecht, e que tem Carla Bolito como actriz convidada. ”É convidar o homem da rua, o homem comum como ele é, filmá-lo como ele é, procurar entendê-lo melhor e que ele traga uma riqueza, um conhecimento, um saber de que nós, artistas, carecemos”, explica.
A cultura, este fim-de-semana, fez-se também num espaço improvável, em Campanhã, onde habitantes foram simultaneamente co-criadores e apreciadores da arte do cinema.