João Pina: nove anos a tentar garantir que não vamos esquecer
Diz quem o conhece que não desiste facilmente. Começou a trabalhar em fotografia com 18 anos e não mais parou. Diz quem o conhece que tem uma obstinação sem fim. No início, a Operação Condor era para si apenas uma sombra. Meteu na cabeça que não ficaria abrigado debaixo dela. E só parou nove anos depois.
Não se sabe se o general chileno Manuel Contreras (1929-), um dos artífices da Operação Condor, estava a par dos hábitos de nidificação deste rapace de envergadura gigante, mas a aliança que forjou, em Novembro de 1975 com outros cinco regimes militares de direita da América Latina (Bolívia, Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai) também tinha um objectivo muito claro à nascença: aniquilar qualquer oposição esquerdista, sobretudo com recurso ao assassinato, à prisão, à tortura e à desaparição. No início dos anos 80, quando a Operação Condor começou a reduzir as suas investidas, a sua acção já tinha provocado cerca de 60 mil mortes.
Depois de um trabalho dedicado às vítimas de repressão política em Portugal (Por Teu Livre Pensamento, 2005), o fotógrafo João Pina (1980-) lançou-se à Sombra do Condor, o seu mais longo projecto pessoal (prolongou-se durante nove anos) que tece um intrincado documento visual. No final de Setembro, resultou na publicação de um livro (Condor, ed. Tinta-da-China) e na inauguração de uma exposição (Operação Condor) no Paço das Artes, em São Paulo, mostra que para já ainda não tem viagem marcada para a Europa. Uma conversa, depois da partida do Brasil rumo à Colômbia, entre a saída de um táxi e o início de um almoço muito atrasado, com algumas pausas para mastigar à mistura.
Em 2005, calculaste que este trabalho podia levar seis meses a concretizar. Na verdade, demorou nove anos. Porque foi preciso este tempo?
Pensei que podia demorar seis meses tendo em conta a forma como ainda funciona alguma imprensa. Se alguma publicação a quem propus o trabalho o aceitasse, passaria seis meses na América do Sul, receberia o pagamento e entregaria o trabalho. Como isto nunca aconteceu, tive de avançar mais devagar. Por um lado, porque não tinha dinheiro para investir num trabalho com esta dimensão. Por outro, porque também resolvi fazê-lo com mais calma, aprofundar o mais possível o tema, compreender as características de cada uma das ditaduras destes seis países. Estudei demoradamente a Operação Condor. E levei algum tempo a descobrir o eixo central do trabalho. Depois, a própria evolução da história e do tema impuseram-me um ritmo. Quando comecei, os países envolvidos lidavam de uma forma muito diferente com este assunto. Nuns a questão evoluiu de forma positiva, noutros nem tanto. A Argentina, por exemplo, entrou num processo interessante de resgate da memória, de julgamentos, investigando casos de repressão política. Mas, olhando em retrospectiva, ainda bem que o trabalho demorou nove anos. Se no início alguma publicação me tivesse dito avança, teria ficado mais pobre. Disso não tenho dúvidas.
E nessa altura tinhas presente a dimensão desta máquina repressiva?
Tinha uma ideia geral do que estava em causa. A Operação Condor começou oficialmente em 75 e termina por volta de 80. Percebi que era essa máquina repressiva que me interessava como eixo central, como “desculpa” para ir para o terreno. Não me foquei só naqueles cinco anos. Ancorei-me no caso específico do Condor, mas quis ir buscar outros assuntos que ajudassem a explicar o que levou à sua implantação.
O que é que te levou a pegar na acção desta “irmandade de almas gémeas”, como lhe chamou o juiz Baltasar Garzón?
O desconhecimento. Tenho curiosidade. Há pouco trabalho histórico, fotográfico ou jornalístico sobre este tema. Existem livros, mas são mais teóricos. Não existe um livro de memória visual sobre este período. Por outro lado, há muitas pessoas vivas que podem falar sobre este assunto, e isso interessou-me logo.
A acção da Condor estava esquecida?
Completamente. Se se perguntar hoje a um brasileiro o que foram as ditaduras militares e a Operação Condor poucos saberão responder. É um assunto que continua a ser algo secreto.
Em nove anos mudam muitas coisas. O teu olhar mudou? Consegues perceber alguma diferença entre as imagens feitas no início e no fim?
Consigo. Não sei é se consigo verbalizar muito essa diferença. Mas consigo perceber que o meu olhar é muito mais analítico. Sou expedito a falar com as pessoas, mas antes não sabia o que fazer com as palavras, não sabia como traduzir essas fontes para imagem. Com os anos, não apenas com o trabalho mas também pela minha vida, aprendi a decifrar as marcas, os sentimentos. Hoje, a minha fotografia é mais orgânica, mais simples. Tento induzir o meu olhar em função das pessoas e não tanto em função dos lugares.
Quase não há depoimentos dos algozes, à excepção de um ex-militar brasileiro. Procuraste outros testemunhos?
Procurei.
E porque não temos mais relatos de quem esteve aos comandos da Operação Condor?
Procurei várias pessoas ligadas, incluindo informadores. Contactei o general Manuel Contreras [o arquitecto da Operação Condor, actualmente detido no Chile], que recusou ser entrevistado. Procurei no Paraguai, na Bolívia… o único que aceitou foi “Curió”, no Brasil, país onde ainda está em vigor uma lei de amnistia. Os militares podem falar sem serem interpelados por isso, ao contrário da Argentina. A lei da amnistia ainda está em vigor no Chile, mas talvez seja por pouco tempo. Acho muito importante ouvir os algozes e os torturadores e todas as pessoas que estiveram envolvidas na operação. Até porque estas pessoas têm informações que os familiares das vítimas jamais terão.
Em que país foi mais difícil dar imagem a um esquema de repressão que se movia com algum secretismo e que não fazia grande alarido dos seus actos?
Penso nisso muitas vezes e não sei se é possível dar uma resposta. Mas talvez a Bolívia e o Brasil. São os países onde estes temas estão mais apagados. Na Bolívia, onde ninguém tentou impedir o meu trabalho, há poucas provas, há poucas coisas que ficaram para trás.
E no Brasil?
Para além de ser um país gigantesco, todas estas memórias estão muito reprimidas, fora do universo das vítimas. Não é possível abordar este tema nos arquivos militares porque estão completamente fechados. Esta força de bloqueio faz com que a memória histórica não esteja muito presente. Na semana passada, três professores de história foram à inauguração da exposição em São Paulo. Estiveram muito curiosos porque este tipo de informações não vem nos manuais de história. Os manuais de história mal falam da ditadura militar no Brasil. Compraram o livro para levar para as aulas para quando falarem do assunto. E este é o nível de esquecimento que ainda existe.
Fala-me do teu método de trabalho, se é que foi possível estabelecer um método?
Fiz mais de 50 entrevistas. Gravei-as em áudio para ter mais contacto visual com as pessoas. Depois das entrevistas, decidia onde fotografar, mediante o que era possível. Mas tentei sempre fotografá-las em lugares de alguma maneira relacionados com as suas histórias. A fotografia dos espaços foi um pouco mais aleatória. Dependia das autorizações e, sobretudo, de alguém que me explicasse aquilo que estava a ver. Tentei reunir o máximo de informação sobre as coisas que queria fotografar para compreender o que estava a ver.
Passaste muito tempo com as pessoas que fotografaste?
Se tivermos em conta o tempo que um jornalista passa em média com um entrevistado, posso dizer que foi muito. Mas não passava assim tanto quanto gostaria ou deveria. Mas houve casos em que passei três ou quatro dias em casa dessas pessoas a falar. Conversávamos cerca de quatro ou cinco horas por dia.
Como tem lidado a maioria dos países com este episódio da sua história recente?
É curioso porque as últimas semanas têm sido muito ricas em acontecimentos relacionados com a Operação Condor. Se me perguntasses há um mês pareceria tudo mais ou menos igual ao que estava antes, apenas com a Argentina a traçar um caminho rumo à criação de memória e de justiça. Mas, no dia 11 de Setembro, aniversário do golpe militar de Pinochet no Chile, a Presidente Michelle Bachelet anunciou que vai apresentar uma proposta de lei às câmaras para anular as leis de amnistia aos militares. Isto para que os juízes e os procuradores possam investigar os crimes de lesa humanidade que não prescrevem. É um passo extraordinário, porque no Chile quase nada aconteceu desde que Pinochet saiu do poder [em 1990]. No Brasil, os principais chefes militares têm sido uma força de bloqueio gigantesca ao trabalho da comissão da verdade e das investigações sobre os abusos durante a ditadura militar. Recentemente, depois de mais uma acção da comissão da verdade, estas forças militares não negaram que as forças armadas tinham cometido abusos, torturas e mortes. E isto é uma grande novidade porque, até agora, não só negavam colaborar como serviam de força de bloqueio, proibindo quaisquer informações sobre esses tempos.
Esperas conseguir provocar alguma investigação em países onde isso ainda não aconteceu?
Isso é muito utópico. Mas se três professores de história forem ao lançamento do livro noutros países e se quiserem usá-lo nas suas aulas, isso para mim já é uma grande conquista. Se conseguir contribuir para a criação de memória histórica, o meu objectivo principal está cumprido.
Assististe a muitos julgamentos na Argentina? Como decorreram?
Há várias causas em julgamento e a Operação Condor é uma delas. Estive em julgamentos em vários pontos do país. Foram muito interessantes historicamente. Para mim, é como estar a assistir aos julgamentos de Nuremberga, onde há pessoas a serem julgadas por crimes contra a humanidade. As leituras de sentença são arrepiantes.
O que procuraste mostrar nessas ocasiões?
Procurei mostrar a cara de pessoas que muita gente desconhece. Os próprios procuradores argentinos desconhecem a cara de muitos réus. Porque as fotografias conhecidas de muitos deles datam do tempo em que entraram na carreira militar, nos anos 50 ou 60. Houve juízes que foram tolerantes e deram tempo para fotografar. Mas, nos últimos julgamentos a que assisti, em 2012, houve juízes que deram 32 segundos para fotografar 75 pessoas. Fotografava com uma máquina de filme por isso pode imaginar-se o ridículo da situação.
Não te parece a pior altura para acabar este trabalho?
Não. Se continuasse podia demorar mais... dez anos! Se os julgamentos começarem noutros países, posso continuar a trabalhar no assunto. E talvez se possa fazer um livro apenas sobre julgamentos. Não sei o que vai acontecer. Mas o que sei é que para a minha sanidade mental era importante fechar este assunto.
Os réus eram hostis para com as câmaras?
Eram. Havia sempre uma grande hostilidade. Os réus sentiam-se incomodados com a presença da imprensa. Recebi muitos insultos.
Acreditas que a fotografia pode ter alguma virtude reparadora? Ver pode curar?
Acredito. A fotografia pode fazer isso. E o facto de os testemunhos das vítimas poderem ser divulgados textual e fotograficamente é reparador. Digo-o porque muitas das vítimas retratadas dizem-no a mim. Entendem este trabalho como um contributo para o reconhecimento do seu estatuto de vítima.
Ao longo do livro convivem muitas fórmulas narrativas. O que te levou a esta panóplia de opções?
Este trabalho é um grande puzzle. Comecei a fotografar coisas que remetiam para o passado, os sobreviventes, os familiares das vítimas de tortura e desaparição. Depois passei a procurar coisas mais ligadas à actualidade, os julgamentos, os funerais, a investigação forense. No final, tinha a representação do passado, tinha as marcas do passado no presente, mas não tinha o passado. Foi aí que decidi ir para os arquivos investigar. Usei várias formas de contar dentro da linguagem e do universo da fotografia: o arquivo, a apropriação…
Que marcas encontraste nestas pessoas? Acreditas que através da fotografia se consegue dar conta daquilo por que passaram?
Não, não acredito. Acho que há olhares que nos dizem muito, mas é impossível através de um olhar decifrar tudo. Há olhares de muita angústia e lugares que nos dão um aperto no peito, mas é fundamental ler os textos que acompanham as imagens para se ter uma dimensão aproximada sobre o que estas pessoas sofreram.
E essas marcas não se conseguem ver numa fotografia?
Não. Por muito carregados que sejam os semblantes.
Como é que procuraste chegar à imagem da desaparição de pessoas, esse terror existencial, como lhe chama Jon Lee Anderson no prefácio do livro?
Sobretudo através das imagens dos centros de tortura. São espaços despidos, que mostram muito esse terror, o vazio, o desconforto.
Que lugar tem o silêncio neste trabalho? Vemos que é uma série que grita, mas há momentos que remetem para a introspecção, para a quietude…
Procurei uma narrativa para o livro que desse esses momentos separados. Entramos no tema pelo arquivo, passamos para um momento mais intimista e silencioso com os retratos das vítimas e os lugares de tortura. No final, a procura dos corpos e os julgamentos funcionam como um grito, como que a dizer que apesar de tudo isto ser do passado continua a haver reflexos no presente.
Já existe alguma instituição em Portugal comprometida em receber a exposição?
Não, ainda não.
Em algum momento te apeteceu desistir deste trabalho?
Não! Raramente desisto de fazer aquilo em que acredito. E isso pode demorar nove anos.