Nova lei para liberalizar profissão de ama

Proposta do Governo que abre a actividade de ama ao mercado livre e que prevê coimas até 3740 euros para quem exerça a actividade sem licença é discutida hoje no Parlamento.

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Com a nova lei, Segurança Social deixa de comparticipar a guarda de crianças pelas amas Daniel Rocha
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Paulo Pimenta
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Daniel Rocha

Licenciada em educação de infância, Patrícia toma conta de crianças em casa há quatro anos. Já teve cinco, agora acolhe duas. Diz que trabalha com elas a expressão motora, plástica, dramática e musical. Está ilegal, mas apenas porque a lei que se propõe enquadrar a sua actividade só esta quinta-feira chega à Assembleia da República, acabando com um vazio legal de vários anos.

“A Segurança Social já esteve cá. As técnicas até reconheceram que eu tenho melhores condições do que algumas creches, só que não era possível legalizar o espaço”, justifica. Porque tem formação na área, experiência adquirida em creches e espaços autonomizáveis dentro do seu apartamento, Patrícia Morais não terá grandes dificuldades em preencher os critérios que a nova lei define como obrigatórios para se exercer a actividade de ama. Mas não será o caso da larga maioria das centenas de anúncios que, em escassos segundos de pesquisa, aparecem em sites como o OLX publicitando os serviços de amas.

Há licenciadas em educação de infância, como Patrícia Morais, mas também professoras, reformadas, domésticas ou apenas universitárias que procuram amealhar algum dinheiro para pagar o mestrado. Os preços variam entre os 5 euros por hora e os 70, 100 ou 180 euros por mês – valores low cost, portanto. Há quem assegure brincadeiras e actividades pedagógicas. Há quem aproveite para lembrar que também faz serviços de manicure em verniz gel. E há quem assuma simplesmente, como se tratasse de uma consequência lógica: “Sou uma jovem que está desempregada e como tal cuido de crianças”. Se a nova lei for aprovada, as coimas para quem exerça a actividade sem a respectiva licença podem chegar aos 3740 euros. O natural, portanto, é que boa parte destas centenas de anúncios, que espelham bem o caos no sector, desapareçam da Internet.

“Tomar conta de crianças é temporário. Só mesmo para tentar angariar algum fundo de maneio para o meu mestrado”, assumiu ao PÚBLICO Ana Silva, uma recém-licenciada em Direito, de 22 anos, que se oferece para ser ama ou babysitter de crianças com qualquer idade. "O meu mestrado é em horário pós-laboral, dá para conciliar tudo”, assevera. A experiência que tem ganhou-a a tomar conta de primos pequenos. “O mestrado custa 1375 euros por ano. A minha mãe está desempregada, o meu pai é o único a trabalhar. Mas nunca pensei fazer disto profissão…”.

A algumas centenas de quilómetros de distância, Ana Rita também se oferece para tomar conta de crianças em Anadia. “Estou desempregada e como tal resolvi por este anuncio porque gosto muito de crianças e para kem precise de ama ou babysitter estou disponivel”, lê-se, assim mesmo, escrito de uma enfiada e sem tempo para acentos. Ao PÚBLICO, Ana Rita, 34 anos, conta que está há dez à espera que do centro de emprego chegue alguma proposta de trabalho. “Isto de tomar conta de crianças foi uma ideia que tive para tentar ganhar algum. Vivo dependente da minha mãe, que é viúva, e lembrei-me disto, até porque, sendo a minha mãe enfermeira, poderia ajudar nalguma coisa”.

A nova lei propõe-se justamente “prevenir e combater práticas ilícitas no exercício da actividade de ama”. Ao mesmo tempo (e para que “a ama possa constituir uma verdadeira alternativa à creche, garantindo aos pais uma melhor compatibilização entre a vida familiar e a vida profissional”) define o regime de acesso e de exercício da profissão (ver perguntas e respostas).

Morte a prazo
A contestação surgiu, porém, do lado da Associação dos Profissionais no Regime de Amas (Apra), que aglomera cerca de 700 amas vinculadas à Segurança Social, e de quem, curiosamente, partiu a iniciativa de reivindicar legislação para o sector. “O nosso objectivo era terminar com os recibos verdes, porque as nossas amas trabalharam durante décadas sempre para a mesa entidade e nunca deixaram de passar recibos verdes. Infelizmente, o que o Governo decidiu fazer foi eternizar os recibos verdes, com o objectivo de privatizar um serviço que até agora é apoiado pela Segurança Social”, acusa Romana Sousa, daquela associação. De facto, abre a actividade ao mercado e dá um ano para que as actuais amas enquadradas técnica e financeiramente pelo Instituto de Segurança Social (ISS) cessem a sua actividade.

As amas que queiram continuar a acolher crianças terão de solicitar ao ISS a emissão da respectiva autorização. Mas então a contratualização dos serviços passará a ser feita directamente entre a ama e os pais, ou seja, acaba-se o financiamento da Segurança Social que vigora desde 1984 e que procurava garantir às famílias com menores recursos o acesso a uma ama.

“Já tive bebés cujos pais viviam num quarto, outros que estavam sob a tutela dos tribunais de menores; são crianças cujos pais têm poucas possibilidades [financeiras] e que, acabando com este trabalho, ficam muito mais desprotegidas”, preocupa-se Camila Gouveia. Com 61 anos, é “ama da Segurança Social” no Porto há pelo menos 24. Pode ter até um máximo de quatro crianças. Recebe 179 euros pelas duas primeiras crianças e 201 euros pelas outras duas, sendo que grande parte desse valor é suportada pela Segurança Social, que é quem encaminha as crianças para estas profissionais. “Temos visitas surpresa à hora do almoço ou do lanche, fiscalização, médicos que cá vêm a casa, formação na área da alimentação, primeiros socorros. Somos muito vistoriadas”, garante.

Por mês, Camila Gouveia recebe da Segurança Social 762,96 euros, sem direito a subsídios de férias ou de Natal. Confirma que passa recibos verdes, apesar de trabalhar há anos para a mesma entidade, e desconta 124,66 euros todos os meses. “Então trabalho há mais de vinte anos para uma entidade e de repente dão-me um ano para ficar desvinculada?! Eu era como se fosse uma trabalhadora por conta de outrem, vão reconhecer-me direito a subsídio de desemprego? É que só posso pedir a reforma aos 66. Como é que faço até lá? Será que eles preferem que fiquemos a receber Rendimento Social de Inserção”, indigna-se.

Pedir a adaptação à nova realidade de amas liberalizadas passou-lhe pela cabeça. Mas Camila não acredita que possa sobreviver no mercado livre de amas. Nem muitas que, como ela, vivem e trabalham em bairros sociais. O de S. Tomé, onde Camila vive, é feito de blocos cinzentos e feios. Para se chegar a sua casa, no primeiro andar, atravessam-se portas de alumínio e escadas também cinzentas e despidas. No interior, há tapetes cor-de-rosa, espreguiçadeiras e uma televisão sintonizada nos desenhos animados. Mas não há luxos. E o espaço é atravancado. “Sei que moro num sítio pobre, no meio de gente com dificuldades económicas. Os pais dos meus meninos nunca poderiam pagar 170 ou 200 euros. E os que podem não é para aqui que vêm…”, preocupa-se.  

A presidente da APAR sustente que a Segurança Social já não está a encaminhar crianças para as amas com quem trabalhou durante várias décadas. “Dizem que não há crianças, mas é mentira. O que eles estão é a preparar já o terreno para daqui a um ano poderem dispensar estas amas, entregando tudo ao mercado”, conclui Romana Sousa.

No reverso desta medalha, em Lisboa, Patrícia Morais aguarda ansiosa pela entrada em vigor da lei. “A maioria dos pais das crianças que tenho tido são licenciados, doutores. São pessoas que se calhar como eu desconfiam da realidade de muitas creches. Quando estagiei, vi palmadas, chapadas, crianças que eram fechadas numa sala quando estavam maldispostas, que eram obrigadas a comer até vomitar só porque estava na hora de comer, saía de lá chocada, algumas vezes”. Neste momento, Patrícia acolhe duas crianças. Recebe 180 euros por cada uma. “É um valor um bocado elevado, mas acredito que os pais se sentem compensados. Se puder legalizar-me e fazer descontos, com o salário do meu marido e com o que ganho a fazer animação de festas infantis aos fins-de-semana dá para viver. O ramo está a fechar portas e prefiro trabalhar assim do que entrar numa creche das sete e meia da manhã às sete e meia da tarde, com três horas de almoço, para ganhar 500 euros”.

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