Jorge Sampaio considera que acesso dos pais a listas de pedófilos é “justiça de apedrejamento”

O ex-Presidente da República defendeu prisão efectiva para violação do segredo de justiça em congresso de juízes no qual a paralisação dos tribunais esteve na ordem do dia.

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Miguel Manso

“Caso não fosse sindicado pelo Tribunal Constitucional, representaria o regresso ao pelourinho e à justiça de apedrejamento”, declarou Jorge Sampaio, que discursava no X Congresso de Juízes Portugueses, a decorrer em Tróia. O ex-Presidente da República pensa que a intenção da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, constitui “mais uma manifestação da deriva securitária” que tem combatido nas últimas décadas, e que representa “o que há de mais contrário à dignidade das pessoas”.

Uma crítica que a ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, também presente no encontro de magistrados, rebateu: “Então também existirá justiça de pelourinho em vários países da Europa ocidental que têm este sistema”. A governante foi repetidamente interrogada pelos jornalistas sobre o prazo para que o plataforma informática dos tribunais volte à normalidade, mas recusou avançar uma data. Este é um problema que Jorge Sampaio disse ser um “imbróglio que tem assombrado a implantação da nova orgânica dos tribunais”.

A ministra garantiu existir uma “previsão” para que o Citius fique operacional, mas recusa-se a divulgá-la porque “no dia 1 [Setembro]” foi avisada de que “o sistema estava a funcionar e depois já não estava”. Aliás, a governante deixou a suspeita de que algo poderá ter sabotado em pouco tempo o sistema. “Depois de tantos testes, algo sucedeu em quatro dias. Mas agora importa-me é cuidar dos vivos”, disse remetendo para o trabalho que está a ser feito de resolução do problema electrónico comarca a comarca.

Paula Teixeira da Cruz não se livrou, porém, de fortes críticas. Parte delas vieram do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, para quem os  problemas que têm afectado os tribunais vão agravar a falta de confiança na justiça.

“As circunstâncias que têm afectado no último mês o sistema de justiça vão, com certeza, adensar as dificuldades do caminho da recuperação que sentíamos nos índices de confiança” na justiça, declarou o magistrado.

Bastante mais incisivo, o presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Mouraz Lopes, lamentou que a reorganização dos tribunais de primeira instância que entrou em vigor a 1 de Setembro passado não tenha sido devidamente preparada e que as respostas que a tutela está a dar aos problemas revelem “tibieza”.

"Há um gravíssimo problema de atrofia do sistema judicial, com consequências difíceis de prever. Claro que o poder judicial está afectado. Estamos a falar de um problema de efectividade do sistema. Há danos que foram criados e que decorrem neste mês de paralisação. Há danos colaterais e pode estar em causa a confiança no sistema”, lamentou o juiz que não se quis pronunciar sobre se a confiança da ministra estará ou não afectada. “Isso é um problema dos políticos. Não é meu”, disse.

O que “não pode continuar”, para Mouraz Lopes, é a “imagem pública dos tribunais parados e dos processos empilhados” e de uma reforma que não está sustentada em “recursos funcionários” nem em “sistemas informáticos adequados”, prova de uma “austeridade cega e cíclica”. E se a governante garantia que “a maior parte dos processos não corre pela plataforma Citius” e que apenas um “pequeno número de acções” são tramitadas nesta plataforma, minutos depois, Mouraz Lopes desmentia-a: “Claro que a maioria dos processos corre pelo Citius. Isto são factos não é opinião”.

A governante avisou que “não aceitará a mistificação de coisas que não aconteceram”. Perante uma plateia de cerca de 400 juízes, Paula Teixeira da Cruz, assumiu-se, apesar de muito contestada desde o inicio do mês, como a defensora de uma melhor justiça. “Contem também comigo. Serei a vossa primeira advogada”, referiu a ministra que aproveitou o momento para contestar a “judicialização” da política. “Os tribunais não têm de decidir política tal como a política não tem de interferir nos tribunais. Sabem do que estou a falar”.

A poucos dias da entrada em vigor do novo mapa judiciário, o Supremo Tribunal de Justiça, sublinhando o princípio constitucional da separação de poderes, indeferiu providências cautelares interpostas por municípios contra o encerramento de tribunais. Considerou que a decisão não poderia ser escrutinada judicialmente por ser da esfera política.

Embora a ministra continue a retratar a paralisação dos tribunais de 1.ª instância como “constrangimentos” que já passaram, são cada vez mais as vozes do sector dando conta de um panorama bem diferente. “As dificuldades são reais e significativas. É mais do que um transtorno embora não se saiba se será o caos”, declarou ao PÚBLICO à margem do encontro, o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, Luís Vaz das Neves.

O magistrado deu também conta da “diminuição muito significativa do número de processos” que ali chegam por via da redução forçada de actividade dos tribunais de 1.ª instância.  A reforma em curso suscita ainda ao juiz outros reparos. “O interior vai ficar cada vez mais afastado da justiça”. E, quanto à mais-valia da reforma destacada pelo ministério, a criação de tribunais especializados, Vaz das Neves desmonta o argumento: “Em alguns casos não têm juízes especializados, o que não permite dizer que se tem uma justiça especializada”.

O Presidente de República, Cavaco Silva, que não esteve em Tróia, enviou uma mensagem defendendo que “Portugal necessita com urgência de um sistema de justiça mais célere e mais equitativo, mais próximos dos cidadãos”.

Já o seu antecessor Jorge Sampaio mostrou-se preocupado com a violação do segredo de justiça, que gostava que fosse punida com pena de prisão efectiva. Depois de considerar que a aplicação de multas pesadas aos órgãos de comunicação social podia redundar no seu encerramento, o ex-advogado lançou a ideia para a assistência: “Haverá que se ponderar se o crime de violação do segredo de justiça não deve ser punido apenas com prisão, mas com a impossibilidade, fixada na própria lei, de suspensão da pena. O desencorajamento à violação seria absoluto e a cidadania ficaria fortemente protegida”. Ficariam apenas de fora desta lei “situações em que o segredo de justiça sirva a impunidade, proteja a incompetência grosseira ou esconda a prática de crimes”.

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