O poder de uma ama

Ter tido uma ama definiu-me como ser humano, não guardo qualquer dúvida disso. Era gaiato único naquela casa, e filho único de parentesco, e isso conferiu-me uma tendência que ainda mantenho para o individualismo e, admito, a solidão

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Petr Josek/Reuters

Eis uma boa notícia: o Governo vai propor uma lei que faça com que as amas adiram ao mercado livre e que a sua actividade seja liberalizada e regulada. A partir desse momento, todas terão de cumprir requisitos mínimos para albergar uma ou mais crianças em casa, mas quem fica realmente a ganhar são os miúdos. Nota-se muito que adorei ter uma ama?

Permitam-me que conte uma história: hoje, a dona Maria José é uma senhora já perto dos setentas. Viúva, ainda trabalha como auxiliar de cozinha numa escola primária para ser capaz de pagar as contas. Tem dois filhos (e respectivos cônjuges) e quatro netos. Tem um gato e um peixe, que dão mais vida à casa de bairro que mantém desde há quarenta anos para cá. E tem-me a mim.

Para mim, a dona Maria José sempre teve um nome demasiado longo para a afinidade que por ela senti. E, convenhamos, porque me era difícil dizê-lo desde tão cedo. Por isso, o Maria José passou simplesmente a Zé. Dos meus nove meses aos treze anos de idade, a Zé foi minha ama. Perdão: foi mais que isso. Educou-me e fez as vezes dos avós emigrados e da mãe que precisava muito do emprego que tinha. A Zé foi uma quase-mãe-mas-mais-que-tudo. Não é, por isso, de estranhar, que ainda hoje, com 28 anos e uma barba rija, a Zé ainda faça parte da minha agenda. De quando em vez, sem periodicidade definida, lá estou eu a tocar-lhe ao telefone ou a bater-lhe à porta. Foi uma relação que começou na cordialidade para passar a ser praticamente familiar.

Ter tido uma ama definiu-me como ser humano, não guardo qualquer dúvida disso. Era gaiato único naquela casa, e filho único de parentesco, e isso conferiu-me uma tendência que ainda mantenho para o individualismo e, admito, a solidão. “On the bright side”, ficaram as capacidades treinadas para a reflexão, a concentração e, acima de tudo, a imaginação. Crescer-se connosco mesmos obriga-nos a ser capazes de brincar com qualquer coisa, criando conjecturas e contextos de outra forma inalcançáveis. Tenho uma forte convicção de que foram os anos de infância com uma ama que me ofereceram a capacidade de aprender a ler, sozinho, aos quatro anos. Foram esses tempos que fizeram nascer a reputação que ainda hoje guardo naquele bairro: “ainda me lembro dele, assim pequenino, devia ter uns dois anos, e dizia as marcas dos carros todas”, dizem as vizinhas. (Não se iludam: o QI estagnou por volta dessa idade. Hoje não sei enunciar as diferenças entre um carburador e um trem de cozinha.)

Por volta dos quatro anos de idade, a minha mãe quis inscrever-me num colégio. A Zé largou num pranto sem brio, reconhecendo que era altura de enfrentar o vazio. Eu, compreendendo que iria largar aquela simpática senhora, não me contive e chorei também. Não foi estratégia sequer, mas resultou na perfeição para demover as intenções da minha mãe. Nessa altura, já todos havíamos compreendido que a frieza do negócio dera lugar ao amor incondicional.

Mas ter uma ama ajudou-me, em primeiro lugar, a compreender a vida. A movimentar-me no mundo real, de mão dada com aquela mulher, descobrindo que se pagam os almoços com moedas, que os cães da rua trazem pulgas e que há vizinhas capazes de despejar água a ferver de um terceiro andar. Ter uma ama sacou-me de um espaço ficcional em que trinta miúdos desenham rabiscos em conjunto, antes de ouvir uma história saída da boca de uma educadora estranha e demasiadamente amigável.

Nunca saberei se teria sido melhor se tivesse passado a infância num colégio, com putos da minha idade em ambientes pouco naturais. Mas a verdade é que nunca senti essa falta, essa necessidade. Não há arrependimento. Há, isso sim, um profundo amor nascido de uma ama que agora é família. Nunca poderei devolver à Zé tudo o que ela me entregou numa bandeja. Estar-lhe-ei eternamente grato.

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