Ler o que nunca foi escrito

Sobram, na edição deste romance inacabado, as marcas editoriais e as mediações que o desviam para fazer dele o que ele não é.

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Para não confinar o romance inacabado de Saramago ao universo estrito dos especialistas, o editor fabricou um simulacro

Este livro, anunciado como a edição de um romance inacabado do espólio de José Saramago, é um híbrido. Integra nove notas breves que o escritor escreveu enquanto trabalhava nele, numa altura em que já estava doente, e inclui ainda um texto do seu biógrafo, Fernando Gómez Aguilera, para além de outro do jornalista italiano Roberto Saviano, conhecido pela sua luta contra a Máfia, mais uma série de desenhos de Günter Grass. Exceptuando as notas, plenamente justificáveis, para quê esta acumulação de materiais a acompanhar o texto inédito, que o sufocam e desviam completamente no momento em que ele vai chegar pela primeira vez aos leitores? É fácil adivinhar: porque as vinte e duas páginas que Saramago escreveu para aquele que deveria ser o seu último romance é algo demasiado inacabado para interessar ao leitor comum. Para não o confinar ao universo estrito dos especialistas e curiosos, o editor fabricou um simulacro.

Quando se publica postumamente um texto inédito, tem de haver um responsável pela edição que geralmente nos informa do estado em que encontrou o texto, dos critérios que seguiu para o editar. Sendo esse editor o intermediário, é necessário que ele nos diga em que consistiu a sua intermediação. Mas aqui não existe a indicação de quem procedeu a esse trabalho. E o leitor só descobre que está perante um romance inacabado quando lê o texto da contracapa, que o informa de que Saramago deixou escritas trinta páginas. Ou serão vinte e duas, como diz Fernando Gómez Aguilera? O biógrafo pecou por avareza ou a editora achou por bem levar até ao fim o jogo demagógico das ampliações?.

Em que consiste a parafernália destinada a fazer-nos ler o que nunca foi escrito e a criar condições para a recepção do livro que não são aquelas que um texto inédito, póstumo e inacabado jamais deve ter? As ilustrações de Günter Grass (que fazem parte da edição comemorativa de um dos seus romances) são, nesta perspectiva, relativamente inócuas. Menos inócuo é o texto do biógrafo que glosa o mito do escritor que, já no limite da sua resistência, ganha, na força com que se agarra à escrita, uma condição sobre-humana. Pode ser verdade, mas quando o tom está entre a hagiografia e a epopeia sentimos a vontade de proteger o escritor do seu biógrafo e desdenhamos do seu incitamento a lermos as letras “que não puderam ser escritas”. Assim termina o seu texto: “Um Saramago em estado puro até à última das suas letras, incluindo aquelas que não puderam ser escritas no lugar a que a vontade as tinha destinado, mas que, contudo, ainda hoje ecoam da liberdade da sua poderosa consciência insubstituível”. E, algumas páginas antes, tinha escrito: “Surpreende a enorme energia que as histórias revelam na imaginação e na determinação do narrador, mesmo antes de serem formalizadas no papel e de chegarem ao leitor”. Esta literatura que já o era antes de ser “formalizada no papel” também dispensaria o texto de Saviano, que tem outra função: a de prolongar a causa e a denúncia da guerra e dos mecanismos de violência e terror que conseguimos adivinhar nos três capítulos do romance inacabado de Saramago. A causa é certamente justa, mas não é justo pôr o texto imediatamente ao serviço dela ainda antes de ter sido objecto de leitura e recepção públicas. E como se tudo isto não fosse suficiente para colocar os leitores sob tutela, o texto é paginado com destaques a vermelho que entram pela mancha da página como decoração gráfica. Que ideia tem a editora do que é publicar um inédito, quando se permite fornecer aos leitores um texto sublinhado (é esse o efeito dos destaques) por quem o edita? Percebemos bem o alcance de toda esta operação quando lemos as declarações do editor Manuel Alberto Valente, reproduzidas num artigo sobre o livro, no “Expresso”, da autoria de José Mário Silva: “Creio que nele [no livro] podemos encontrar Saramago no seu melhor. Eu em tempos fui seu vizinho e ele dizia-me que podia só escrever dez linhas numa manhã, mas que essas linhas ficavam prontas, definitivas, já não lhes tocava mais”. Ao editor, dá muito jeito que nós acreditemos nisto, mas por azar uma das notas de Saramago desmente-o: “Regressei a Belona S. A. [Saramago pensava então chamar-lhe assim]. Corrigi os três primeiros capítulos (é incrível como o que parecia bem o deixou de ser)”. E, no mesmo artigo, Pilar del Río vai ainda mais longe nesta ideia e o leitor só tem de seguir as instruções e embarcar na ilusão do “como se”: “As personagens evoluiriam, a investigação também, mas rapidamente se precipitaria o desenlace. Acabaria por ter uns seis capítulos e talvez o dobro do tamanho, não mais”. Embalado por esta lógica que constrói um romance hipotético, José Mário Silva remata com números mais precisos: “Os três capítulos correspondem a 66 páginas, pelo que o tamanho final ultrapassaria em pouco as cem páginas”. O leitor só precisa de imaginar essa totalidade que é uma espécie de futuro anterior do livro, mas com a ajuda do editor e com o efeito dos seus ecos é muito fácil. Tanto mais fácil quanto Saramago revelou numa nota: “O livro terminará com um sonoro ‘Vai à merda’”. Só falta um passo para editores, biógrafos e demais gente mobilizada para os grandes empreendimentos da coisa literária garantirem aos leitores que o “Vai à merda” só não foi impresso na última página para não cheirar mal.

E agora, que já ocupámos tanto tempo e espaço a desactivar os intercessores, é tempo de ler o texto, que não tem de responder por eles.

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