O saber ocupa lugar

A aparente plasticidade do sistema de ensino secundário revela realmente um sistema algo rígido que enjaula os estudantes nos seus casulos de estudo.

O ensino secundário regular, estruturado através dos cursos científico-humanísticos, dá aos jovens a oportunidade de escolher entre uma de quatro vias de estudo, simplificando, Ciências, Letras e Humanidades, Economia ou Artes. Cada ramo tem depois afeto a si um núcleo de disciplinas obrigatórias, bienais ou trienais, e uma bolsa de disciplinas opcionais da qual os jovens escolherão conforme as suas preferências e a disponibilidade da escola. Tudo numa lógica de coerência. Para exemplificar, a área de Ciências, a minha, tinha como disciplinas específicas obrigatórias Matemática (trienal), Biologia e Geologia e Física e Química (bienais). Como opção, no 12.º ano, escolhi Biologia e Física, entre um leque que incluía ainda Química e Psicologia. Existem teoricamente outras opções, mas necessidades logísticas das escolas não permitem acomodar todas as combinações.

Mas, como disse, grosso modo, o sistema funciona numa lógica de coerência. Alunos que escolhem Ciências estudam áreas das ciências, estudantes do ramo das Humanidades estudam História e afins. A aparente plasticidade do sistema revela realmente um sistema algo rígido que enjaula os estudantes nos seus casulos de estudo. Eu, tendo escolhido Ciências, em nenhum momento do meu percurso académico pelo ensino secundário posso ter formação em História ou Economia. Precisamente quando a minha maturidade e compreensão enquanto estudante mais propiciavam o estudo dos acontecimentos históricos. E ainda que exista, em teoria, a possibilidade de ter Economia C no 12.º ano, nunca será a formação sólida da economia do curso das Ciências Económicas. Além de que é consabido pelos professores e estudantes de todo o país que disciplinas opcionais, como sejam as anuais específicas do 12.º ano, tendem a ter um programa mais laxo em exigência, sendo que até alguns docentes utilizam estas disciplinas anuais como fator de incrementação da média final dos alunos, como, de resto, foi recentemente denunciado pelo Conselho Nacional de Educação.

A escola deve dar aos jovens uma formação competente e coerente que os prepare para um curso universitário e para uma carreira. A escola não pode desligar a Física da Matemática ou o Português da História. Mas o que a escola também não pode ser é uma estéril fábrica de especialistas, em que se formam jovens com uma visão redutora do conhecimento. Não podemos esperar que os jovens se fascinem simultaneamente por todas as áreas, nem muito menos devemos obrigá-los a fazê-lo. Mas quando os jovens tomam a iniciativa, não pode ser a escola o elemento castrador dessa vontade de saber mais. Deve haver mais orgânica na escolha da carteira de disciplinas. Eu, como tantos outros, queria ter estudado História e não pude. Eu estava preparado, fosse essa a solução, para suportar mais carga horária e fui impedido. Ou aprendes X ou aprendes Y, nunca os dois.

Um grande académico, dos que dão que escutar, é alguém dotado de uma vasta cultura intelectual, profundamente conhecedor da sua especialidade, mas também com visão e perspetiva sobre áreas que extravasam largamente o seu ramo específico de estudo. É o cientista para quem a História não é um hobby turístico mas um complemento estruturante do seu crescimento enquanto pensador. É o historiador para quem a Ciência não é uma mera revista de curiosidades mas uma ferramenta fundamental para melhor interpretar fenómenos passados. Mais importante, ainda, é a função do conhecimento lato na maturação de um sentido de perspetiva e na exaltação da consciência. É a capacidade estruturadora que tem de nos fazer recriar enquanto pensadores progressivamente mais lúcidos em relação ao mundo que nos rodeia. A versão pequenina do académico será, então, o especialista que, limitado pelos curtos horizontes que sobre si mesmo parece criar, é, inevitavelmente, mais propício a adquirir uma postura de pretensão sobre a sua área de estudo, ignorando o contributo de outros ramos para a melhor interpretação de determinado fenómeno. É um pensador menos consciente, um profissional menos capaz. E, paradoxalmente, as escolas são quem os produz.

Não devemos deixar morrer a figura do académico. Devemos dar aos jovens várias lentes com as quais possam olhar o mundo. Devemos cultivar o curioso. O inconformado. Que faz perguntas. Que incomoda. Numa época em que tudo parece ter que culminar em valor financeiro, em que o conhecimento é o estéril precedente de um emprego que produz valor económico, talvez devêssemos resgatar a paixão de António Guterres pela educação, para voltar a dar ao saber o seu devido lugar.

Estudante universitário

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