Começou a campanha catalã para um referendo que Madrid diz ser ilegal
Braço-de-ferro vai prolongar-se nas próximas semanas, com o Governo a responder no Tribunal Constitucional. Em Barcelona, fazem-se apelos à mobilização cidadã.
Num processo que se arrasta há dois anos, há pouco espaço para surpresas e a reacção do Governo de Madrid foi a que se adivinhava, com a vice-presidente, Soraya Sáenz de Santamaría, a repetir que a consulta é inconstitucional e que, como tal, não vai realizar-se. “Neste país, todos estamos sujeitos à lei”, afirmou, no Palácio de Moncloa de Madrid. De visita à China, o primeiro-ministro do Partido Popular, Mariano Rajoy, lamentou mais este avanço: “Foi Mas que se meteu nesta confusão”, disse.
O braço-de-ferro tem sido permanente e já se conhecem os argumentos de ambas as partes. O guião está escrito e as cenas vão-se sucedendo à espera de um desenlace. A Generalitat (governo regional) nunca escondeu o jogo e tem atrás de si a esmagadora maioria do actual parlamento assim como repetidas sondagens que, mais do que indicarem a intenção de os catalães se quererem separar de Espanha, confirmam a vontade de grande parte da população acreditar que tem o direito a decidir.
Madrid sempre recusou negociar qualquer tipo de consulta. A Constituição, como é normal, prevê a indivisibilidade do Estado espanhol, e, à partida, só o Governo central teria mandato para realizar um referendo desta natureza. Esgotadas várias tentativas para que isso acontecesse, o parlamento catalão aprovou há dias uma lei de consultas que dá a Artur Mas o direito de assinar este decreto. O resultado não será vinculativo, mas servirá para mostrar a vontade dos catalães, insistem os partidos no poder, a Convergência e União, de Artur Mas, mas também a Esquerda Republicana, de Oriol Junqueras, que obteve um resultado histórico nas eleições autonómicas de Novembro de 2012.
Já com o decreto assinado, Junqueras defendeu que a obrigação dos cidadãos é votarem, mesmo que a esse acto se chame desobediência. Se Madrid tentar impedir a consulta, afirmou, estará “a ir contra todo o quadro legal e a legitimidade democrática”. Quim Arrufat, deputado das CUP (Candidatura de Unidade Popular, um partido de esquerda que nunca tinha concorrido às autonómicas e elegeu três membros no actual parlamento catalão), antecipou um “Outono histórico” e pediu a todos os catalães para continuarem a mobilizar-se e assim poderem votar.
Aliás, todos os partidos que defendem o referendo lamentaram que nos últimos dias já o Executivo do PP tenha anunciado o que vai fazer, antes do decreto ser conhecido. Na verdade, é o tal guião de que ninguém se tem desviado muito; sempre se soube que o passo seguinte é pedir que a lei das consultas aprovada pelo parlamento catalão seja considerada inconstitucional, ilegalizando assim o decreto assinado com base nesta lei.
Oficialmente, o Governo vai reunir-se domingo para preparar a resposta ao decreto, mas Sáenz de Santamaría já disse que tudo está em marcha. “Iniciámos esta manhã os passos para promover os recursos de inconstitucionalidade com a petição que informa o Conselho de Estado; quando estiver emitida vamos reunir o conselho de ministros e apresentar o recurso no Constitucional”, explicou a vice-presidente.
Um governo "neutro"
“Claro que o decreto é legal, nós somos um governo legal, democrático e não emitimos decretos ilegais”, antecipava quinta-feira numa entrevista a quatro jornalistas europeus Roger Albinyana, secretário dos Assuntos Externos e Europeus da Generalitat. Albinyana garantia ainda que tudo estava já pronto “do ponto de vista técnico para garantir um voto democrático e livre” a 9 de Novembro. “Assim que o decreto for assinado é lei, ou seja, a campanha começa. Nós, enquanto governo, vamos manter-nos neutrais. Mas os partidos estão preparados e a sociedade civil também. Do que eu oiço, a campanha vai começar.”
Logo depois da assinatura, surgia no site da Generalitat uma página dedicada à consulta com o título “Tu decides”.
Recordando que este processo foi lançado pelas pessoas, Albinyana admitiu que o seu governo está “sob enorme pressão” popular. “As pessoas estão a exigir votar e também têm pedido unidade, é importante que os partidos se mantenham unidos.”
Afinal, o actual pico do nacionalismo catalão explica-se de várias maneiras, incluindo a declaração de inconstitucionalidade de vários artigos de um novo estatuto de autonomia que chegou a ser aprovado pelo Parlamento de Madrid (quando no Governo estava o PSOE, de Rodríguez Zapatero, e o PP, na oposição, levou o documento a tribunal e mobilizou a recolha de assinaturas para um referendo contra o estatuto). Mas há um dia que mudou tudo: a Diada, o dia nacional catalão de 2012, quando, a 11 de Setembro, um milhão de pessoas participou em Barcelona numa manifestação convocada pela Associação Nacional Catalã sob o slogan “Catalunha, um novo estado da Europa”.
Indesmentível é também que Artur Mas não era um independentista, antes alguém que defendia mais autonomia para os catalães dentro de Espanha. Mudou de ideias, afirmou entretanto. Desistiu de esperar o impossível, defende. Pois se de Madrid, diz Albinyana, “nos últimos cinco anos, tudo o que tem acontecido é no sentido da recentralização”.
Garantias democráticas
Uma semana depois do “não” escocês à independência, a Catalunha dá mais um passo num caminho que os seus líderes garantem não poder ser parado. O que Albinyana assegura é que “o voto só vai acontecer se for legal e contar com garantias democráticas”, contrariando assim algumas teorias. Òscar Palau, editor do jornal El Punt Avui, nacionalista, admitia em Fevereiro ao PÚBLICO um cenário em que a generalitat avançasse com a consulta nem que fosse “para que a guarda civil viesse buscar as urnas”.
Depois de assinar o decreto, com uma caneta catalã, no Palácio da Generalitat, Artur Mas fez uma curta declaração para afirmar – em catalão, castelhano e inglês – que “a Catalunha quer falar, ser ouvida e votar”. Do texto do decreto faz parte a pergunta dupla que o parlamento já aprovou: “Quer que a Catalunha seja um Estado?” e, em caso afirmativo, “Quer que esse estado seja independente?”. No decreto também se lê que o objectivo da consulta é “conhecer a opinião sobre o futuro político da Catalunha”.
Se não houver consulta, já se sabe, haverá eleições antecipadas com a independência como único ponto do programa dos partidos que a defendem. Pelo menos aí, o futuro, da Catalunha, e dos líderes envolvidos neste processo, vai mesmo começar a conhecer-se.