Uma dança contra as ditaduras

Cecilia Bengolea e François Chaignaud regressam para dançar para lá dos limites do corpo. Dub Love, sábado na décima edição do Festival Circular, em Vila do Conde, é um tiro no escuro de quem não desiste

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Dub Love, a sua mais recente criação encontra-nos no ponto onde a dupla nos havia deixado a última vez que os vimos, em 2013. Twerk, apresentado no Guidance, em Guimarães, era já uma bizarria coreográfica, assente numa relação de proximidade – quando não mesmo eroticamente desenhada – entre corpo e música. Mas agora, da música transe aos sons do reaggae vindos das ilhas da Reunião, esses corpos tornam-se num espaço de encontro entre o desejo e tensão.

 A revista Les Inrockuptibles, após a estreia em Viena, falava de Dub Love como  “uma verdadeira deflagração sonora e visual de intensidade maxima”, descrevendo os movimentos de Chaignaud, Bengolea e Ana Pina como armas sonoras. “Do mesmo medo que High Elements [o músico convidado] mistura em directo um poderoso dub, que faz menear as ancas num swing sedutor, a dança deste trio mistura graciosamente a beleza de um corpo em equilíbrio vindo do bailado clássico com um sentido do movimento que responde a todas as danças, acasala com o ritmo do dub, forma uma curva que Picasso não recusaria, sempre em pontas e com uma energia destruidora”.

 “Queremos uma dança que escape aos ditames da ditadura”, dizem-nos. Uma ditadura que identificam como social e política, por força das origens da própria música, e uma ditadura que é também a do movimento e do discurso que sobre ele se constrói. “Esta é uma música que, de forma muito consciente, nos tenta acordar. É uma música que, para os que a fazem e os que a ouvem, actua contra a opressão e a domínio exterior, promovendo uma forma de liberdade e emancipação do indivíduo através do seu próprio corpo”.

Isso é tanto visível nos bailarinos, como perceptível, ou intuído, nos espectadores, que no decorrer da performance, começam a sentir as vibrações da música como o movimento da própria peça. Acrescentava a Inrockuptibles que Dub Love “é um exercício corporal onde a beleza e o esforço se conjugam para irrigar movimentos […] que se desviam da sua zona de conforto para se reinventarem à medida do espaço que a música vai criando”.

“Não é só uma paisagem sonora”, diz Cecilia sobre esta dimensão presencial que a música vai instituindo, “é também uma vibração que não se sabe a quem pertence”.

Arte da metamorfose
A capacidade que a dupla tem de actuar como agente atractivo é sinal de um desejo de reescrita do movimento como arte da metamorfose. A expressão é intencional porque literal. Aconteceu com Les Sylphides (2009, apresentado no Materiais Diversos em 2011) em que saíam de casulos para dançar, qual crisálidas, ao som de Viva Foverer, das Spice Girls, e, desde então, num crescendo, tem vindo a apresentar-se como um corpo-receptáculo. Dub Love surge no percurso da dupla como um condensado de memórias e de afectos, potenciados por um movimento comunitário, como o era, recordam, o da dança clássica enquanto ritual social. Tal como, mais tarde, haveriam de provar com (M)imosa (2011, com Trajall Harrel e Marlene Monteiro Freitas, que passou pelo Circular e em 2012 pelo Alkantara). São os próprios que dizem que Dub Love ocupa um lugar particular a partir do qual se podem ver pontes e ligações com criações anteriores. “O nosso trabalho não é pensado com a intenção de propor uma arquitectura única ou com a ambição de ir mais longe do que o diálogo com o tempo no qual está a ser criado”, admite Chaignaud. Mas é verdade que é possível encontrar relações estreitas entre Dub Love e outros espectáculos da dupla.

De um ponto de vista estrutural, Dub Love aproxima-se muitíssimo de Danses Libres (2012), um dos mais interessantes e conseguidos trabalhos, feito a partir do repertório de François Malkovsky (1889-1982), esquecido coreógrafo dedicado a uma dança poética, de inspiração niilista, onde o corpo surgia como ponto de passagem para um abandono do material. Diz Chaignaiud, a propósito dessa proximidade entre Dub Love, coreografia em diálogo com o reggae e o dub e o que neles possa existir de ancestralidade, e uma recriação como Danses Libres, onde o movimento dialogava com a música através, primeiro, da sua materialização e, depois, da sua desmontagem: “As danças de Malakovsky também tinham uma agenda muito afirmativa. Eram danças que queriam promover um homem emancipado”. Eram danças de libertação num tempo de mudanças políticas e ideológicas com profundo impacto social.

De ponto de vista estritamente instrumental, o uso de pontas pelos bailarinos aproxima Dub Love do uso de dildos que, através da sua presença nos ânus de Bengolea e Chaignaud, potenciavam os movimentos de Paquerette (2005-2008) ou o hula-hoop de Duchesses (2010), que controlava os movimentos ao ponto de os desenhar dentro do círculo intimo do próprio arco.

Ao longo dos últimos anos os corpos de Bengolea e Chaignaud têm sido campo vasto para a experimentação. E, com eles ou através deles, um modo de agir sobre um contexto cultural e criativo que foi integrando a bulimia criativa da dupla. Não é apenas porque o corpo está no centro das suas coreografias – como está, invariavelmente, numa geração que cresceu no interior de um imenso desejo de fuga ao, e do, corpo; mas porque essa centralidade é agora convocatória de tudo o que existe nas margens. A dança de Chaignaud e Bengolea respiga o que em torno dela gravita para lhe dar uma outra forma, quando não mesmo outra dimensão.

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