Rafael Moneo: “A cidade é o museu”

O arquitecto espanhol, uma das mais marcantes figuras da arquitectura contemporânea e seguramente um alto expoente da arquitectura ibérica, tem uma exposição no CCB.

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Museu de Arqueologia de Mérida NUNO FERREIRA SANTOS
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Ampliação do Museu do Prado, em Madrid NUNO FERREIRA SANTOS
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L’ Illa Diagonal, em Barcelona, com Manuel de Solà-Morales NUNO FERREIRA SANTOS
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Catedral de Nossa Senhora em Los Angeles NUNO FERREIRA SANTOS
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Edifício de Laboratórios para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque NUNO FERREIRA SANTOS
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Rafael Moneo fotografado no CCB

Esta é a sua primeira exposição antológica. Porque é que demorou tanto tempo?
Sempre tive um pouco de desconfiança e resisti a entender que sentido tinha uma exposição de arquitectura. Ou o que é um museu de arquitectura. A própria condição da arquitectura está na sua materialidade e condição física, que não a converte em objecto que se possa reunir com outros para ser material de uma exposição ou de um museu. A cidade é o museu. A exposição é o momento em que a arquitectura se vê nas melhores condições. Como tive oportunidade de ver muitas exposições de arquitectura, sempre pensei que os aspectos mais íntimos do arquitecto eram o que me interessava mais. Mais do que ver um pedaço de edifício ou uma maquete. Sempre me pareceram muito estranhas as exposições em que se refazem todas as maquetes pela mesma mão. Desconfio da recomposição com o computador dos interiores de Palladio.

Ao aceitar fazer a exposição pensei no que diz algo da minha pessoa de um modo mais directo e sem mediação. Então pareceu-me que os desenhos tinham sentido e o comissário da exposição, Francisco González de Canales, decidiu seleccionar os projectos pelo seu interesse mas também se revelassem algum desenho pouco conhecido. A exposição mostra o que foi a minha obra mas o desenho é o fio condutor.

O que é hoje contracorrente: os arquitectos não mostram desenhos. Mostrá-los é quase heróico…
Sim, mas eliminámos os esquissos, só mostramos desenhos de arquitectura [rigorosos]. O que dá a esta exposição um outro tipo de interesse, que é o de mostrar como, nos anos que coincidiram com o desenvolver da minha carreira, evoluiu a noção de desenho. A exposição permite ver a passagem do desenho convencional a lápis – mais do que a tinta – e depois de que modo absorve o computador. Não dando ao computador o papel de gerador de formas mas como pode ser utilizado nos desenhos convencionais. O terceiro aspecto da exposição que provavelmente tem valor é, mais simplesmente, como registo da minha obra. Porque é abrangente e mostra projectos mais difíceis de aceder ou pouco conhecidos.

O seu trabalho como arquitecto é muito prestigiado mas tem também uma obra teórica significativa. Os dois aspectos conflituam? Como é que consegue ter um pé na teoria e outro na prática?
Quem gosta de arquitectura é obrigado, parece-me, a encontrar razões em termos teóricos. Ou, pelo menos, a explicar o que está detrás da forma construída. No meu exercício profissional, a prática ajuda a dar consistência ao que em determinados momentos é a minha reflexão acerca da arquitectura. O conhecimento da arquitectura ajuda o desenho. Esta é uma premissa que nem sempre é satisfeita pela realidade, onde se dão casos contrários… Mas penso que um conhecimento prévio verdadeiro e profundo garante a capacidade do projecto. Isso é o que me interessa. Também é verdade que há momentos da história nos quais pessoas que eu respeitava, crendo que realmente tinham conhecimento, não eram arquitectos brilhantes.

Há este preconceito que nos diz que é incompatível ser um bom teórico e académico e ser um bom arquitecto…
(Risos) Bem, seguramente é impossível… A minha vida profissional é o resultado destes dois modos de ver a profissão. Seguramente limitou a minha prática profissional, sobretudo em termos de uso do tempo. Mas ter assumido escrever sobre arquitectura também levou a que outras pessoas escrevessem sobre o meu trabalho. Num livro como Apuntes sobre 21 obras trato de dar razões teóricas às obras que fiz. Não estou a responder de improviso a essa questão. Sou muito consciente que essa dualidade definiu os limites do meu exercício profissional. Se eu não tivesse sido um arquitecto também comprometido com o ensino e com a escrita, o meu escritório seria muito maior.

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Não há assim tanta ocasião para ser radical em arquitectura Nuno Ferreira Santos

Estou a fazer de advogado do diabo, ao dizer que o conhecimento destrói a frescura do arquitecto distraído…
Sim, mas a arquitectura não é sempre frescura (risos)… Na realidade, não é claro quantas obras de arquitectura têm frescura. Aceitar o conhecimento como origem da arquitectura dá lugar a uma atitude em termos estéticos que se inclina para o lado apolíneo face ao dionisíaco. Mas é assim, cada um responde com os recursos que tem.

Se descrevesse a sua obra diria que procura sempre integrar explicitamente diferentes aspectos do fenómeno da arquitectura: lugar, história, tecnologia, tipologia… Nunca é uma arquitectura lacónica, está sempre à procura de fundamentos.
Não há assim tanta ocasião para ser radical em arquitectura. A complexidade implícita na arquitectura leva a prescindir de esforços de simplificação. O Kursaal de San Sebastián é um projecto que se pode dizer que arranca de propostas formais que nos levariam a falar de minimalismo ou de um escultor como Oteiza. O projecto está resolvido com aquelas manchas abstractas naquele lugar. Mas depois essas manchas abstractas necessitam de passar através do filtro que as converte em realidade. E então tudo é menos radical e mais complexo. Nesse sentido defendo a necessidade de uma arquitectura inclusiva, que não reduza. É verdade que a redução das componentes formais dá lugar a imagens mais conspícuas e impactantes, mas é muito difícil que a arquitectura possa prescindir dessa complexidade que supõe o seu próprio modo de ser

Antes desta conversa falávamos de um ensaio sobre Aldo Rossi que escreveu em 1976. Ambos dão importância à história, mas Rossi procurava uma espécie de arquitectura de grau zero, e a sua arquitectura está cheia de circunstâncias e significados. Nesse caso seria um anti-Rossi…
Acredito firmemente que sou o arquitecto que seguiu o Rossi mais fielmente, mais do que o próprio… (risos). Rossi está muito presente na minha educação depois de me formar como arquitecto. No que diz respeito ao que entendo que ele queria dizer, no que diz respeito à cidade. Eu pretendia efectivamente entender o que as suas palavras queriam dizer. Não a força poética e convincente das suas palavras, mas a sua proposta teórico-construtiva. Vejo-me muitas vezes a seguir o que entendo que era o seu modo de pensar. Mais até do que o que foram algumas das suas últimas obras. Nos últimos 15 anos, Rossi vai sentindo que o modo como se produzia arquitectura não dava lugar a que os seus princípios se manifestassem. Faz então um salto para uma arquitectura de imagens. Afinal resta apenas isso, o controlo do arquitecto está só nesses rostos vazios. E a esse aspecto eu resisti sempre. Vejo muitas vezes as minhas obras a responder não ao que Rossi fazia como arquitecto mas ao que Rossi dizia como teórico.

Com a crise que se vive hoje na Europa, é tempo de regressar aos “fundamentos” como Rem Koolhaas propõe na Bienal de Veneza deste ano? E isso significa que o arquitecto irónico e iconográfico das décadas passadas deve dar lugar a um arquitecto severo, espartano? Há uma mea culpa a fazer?
Parece-me que o catálogo dos “elementos da arquitectura” de Koolhaas é valioso. É importante reconhecer qual é a matéria de que dispõem os arquitectos hoje. Não se trata de discutir se são quinze ou se deviam ser reduzidos a doze mas é verdade que um arquitecto pensa hoje em termos de “parede cortina de vidro” ou em termos de escalators… Agora isso não resolve o problema da estruturação da forma. O problema de materializar um edifício deve dar espaço a outros princípios. No caso de Koolhaas foi através de diagramas, a certo momento da sua carreira. Ele agora podia dizer: “diagramatizemos” e usemos os “elementos” e aí termina a questão. Mas possivelmente há algo mais. Parece-me importante tudo o que seja comprometer a arquitectura com a cidade de modo a não ser somente um bem de consumo como agora parece acontecer nos projectos na China. A sociedade chinesa necessita de construção e os arquitectos europeus e não europeus estão disponíveis. Mas um arquitecto tem que sentir de que modo é recebido o seu trabalho, que impacto tem. Se eu construísse uma casa em Lisboa, penso que seria capaz de me dar conta do modo que era recebida na cidade, de que modo a recebiam os críticos. Não penso que aconteça o mesmo na China. Não penso que a arquitectura se possa assemelhar a uma obra de arte em termos convencionais, como uma expressão pessoal. Aí é onde entra Rossi. Contar que a cidade seja onde se mede o valor e se reconhece a adequação ou não de uma arquitectura, é importante. E isso obriga-me a dizer, e aí vem o mea culpa, que eu não gostaria de reduzir a arquitectura a um mercado de arquitectos reconhecíveis que as cidades compram. Gostaria que a arquitectura ainda fosse feita a partir das cidades. Que os arquitectos de Lisboa pudessem fazer Lisboa. Isso não exclui que a ponte 25 de Abril pudesse ter sido feita por um escritório americano ou que um arquitecto alemão possa trabalhar em Lisboa. Mas as cidades têm que ser feitas a partir da cidade.

É irónico que Koolhaas, que lançou a “cultura da congestão” em Delirious New York, queira agora regressar aos “fundamentos”?
Em Koolhaas está o paradoxo de que ele, que é o paradigma do arquitecto estrela, desconfia tanto do arquitecto artista como do arquitecto sonhador de utopias, e em Delirious New York deixa a arquitectura e a produção da cidade nas mãos desse corpo de empreendedores difícil de definir que fizeram Nova Iorque. Há momentos em que a visão de Koolhaas é lúcida, o que não é tão lúcido é de que modo ele poderia ser um desses arquitectos elegidos pelos developers americanos de 1880 ou 1890. Temo que não, esses não elegeriam os Koolhaases, que nesse momento eram Gilbert Cass ou outros arquitectos académicos.

Ainda sobre a crise: não se sente culpado de gastar demasiado dinheiro nos seus edifícios? Está a pensar fazer edifícios low cost?
Não penso, não… Sob esse ponto de vista, vejo a minha obra com tranquilidade. Seguramente que algumas obras foram mais felizes que outras, mas vejo-as como respondendo com lealdade ao que eram os meus interesses num determinado momento. Não as vejo a dizerem-me que me equivoquei ou fui demasiado pós-moderno. Cada obra está ligada a um determinado momento, mas não são servis ao que a moda ou ao que o momento pedia, o que dá mais valor às obras de arquitectura que estão expostas. Não vejo outra maneira de as ter feito. Outra coisa é a qualidade e o êxito que tiveram. Se são mais ou menos felizes.

Mas pensa que um conceito como o de “sustentabilidade” tem uma boa tradução para a arquitectura?
Já muita gente o disse, e ao dizê-lo não penso iniciar nenhuma polémica: não há arquitectura mais sustentável do que a arquitectura antiga e vernácula. Todo o mundo quer ser sustentável mas ninguém está disposto a prescindir dos hábitos do mundo tecnológico em que vivemos. Quem aceita que se construa apenas com materiais que danifiquem menos o meio ambiente? Não se quer prescindir de nada do que se conquistou em termos de conforto e isso dificilmente concorda com a ideia de sustentabilidade radical. Para uma sustentabilidade radical teríamos que ir às arquitecturas arcaicas.

Não há um estilo Rafael Moneo, uma marca. Fazendo parte do star-system nunca sentiu necessidade de ter algo que pudesse ser entendido como um estilo?
(Risos) Não me parece. Tive muitos estudantes, e vejo gente à minha volta que esteve relacionada comigo e que está em posições importantes. Não reclamo que influenciei o que fazem mas seguramente algo da minha conversa passou para eles. Vejo de vez em quando exemplos de arquitectura de pessoas que repetem edifícios que eu fiz. O edifício em Murcia [Ayuntamiento] foi replicado em toda a parte do mundo. Mas sinto vergonha por isso. Não gosto desse sucesso onde algumas características formais dos edifícios são replicadas. Porque a arquitectura que eu faço resiste e não quer ser reproduzida desse modo.

Gostava que falasse de dois edifícios em particular: o Museu de Mérida e a catedral de Los Angeles. Mérida, construído nos anos 1980, é um comentário ao pós-moderno no sentido que é um edifício muito cenográfico?
Obviamente é conhecido no esplendor do pós-modernismo mas não penso que possa ser visto como pós-moderno. É um edifício que tem algo de fenomenológico. Tem a ver com a terra, com o solo. O que foi construído ao longo do tempo é entrelaçado, literalmente. É um edifício construído não com imagens ou memórias mas com a substância de muitos anos passados. Na Catedral não quis assumir a responsabilidade de partilhar uma experiência religiosa íntima. Quis contar o que senti em igrejas bizantinas ou em Ronchamp [Le Corbusier]. Mérida é mais substancial, está relacionado com a metafísica, com a filosofia.

Em Los Angeles, a catedral está próxima do Walt Disney Concert Hall, de Frank Gehry, e parece uma afirmação de seriedade e cultura europeia…
Como sabe, o Frank Gehry fez vários projectos antes desse último, que é construído depois do Guggenheim em Bilbao. Não tentei polemizar com Frank Gehry. Acredito que a eficácia do Guggenheim em Bilbao não acontece em Los Angeles, não importa quanto o Frank Ghery grita. Está a gritar mas ninguém se assusta. Isto acontece muitas vezes também com esculturas modernas colocadas no meio da cidade. A cidade é mais forte que essa arquitectura que afinal não tem força, não é o impropério ou a exclamação que pretende ser. A catedral reconhece algo que me parece mais importante que é a divisão de espaços e a criação de um pátio que permite isolar uma comunidade. A catedral não expõe a sua ordem a toda a cidade. O edifício de Frank parece-me querer repetir a experiência do Guggenheim numa circunstância que verdadeiramente não ia ter o mesmo efeito ou impacto.

Num ensaio que escreveu sobre Siza dizia que a sua arquitectura era play-time, a partir de certa altura. Muitas vezes não é compreendido que Siza é um arquitecto lúdico…
É admirável ver os últimos projectos de Siza, são sempre extremamente inteligentes. Gosto muito do projecto brasileiro [Museu Iberê Camargo], é um projecto extraordinário. Usa os elementos que conhece muito bem, mas a substância para lidar com esses elementos tem por trás um espantoso modo de pensar em termos espaciais. Gosto da “pala” do Pavilhão de Portugal, da igreja em Marco de Canaveses. Obviamente precisa de fazer muitas coisas. Mas conseguiu manter uma extraordinária qualidade na quantidade.

Regressando a um comentário que fez, a China parece ser a última morada dos arquitectos-estrela. Vários edifícios da Zaha Hadid, Rem Koolhaas, Steven Holl estão a ser construídos…
Mas vemos um edifício tão impressivo como o CCTV do Rem [em Pequim] e é irrelevante. O que importa é fazer edifícios relevantes. E deste ponto de vista tenho a certeza que o Iberê Camargo é um edifício relevante.

Gostava por fim que fizesse um comentário sobre a arquitectura portuguesa e a espanhola. Estava a pensar que deste lado há uma delicadeza e intuição e desse uma robustez e elaboração teórica…
Como sabe, a relação da arquitectura espanhola com a portuguesa vem de Siza. Como já disse muitas vezes, pelo modo como fomos impactados pelo Álvaro quando o conhecemos nos anos 1960, com o Nuno Portas. Não se pode falar de arquitectura portuguesa sem referir o Álvaro. É mais ou menos o caso do Alvar Aalto em Finlândia. E ele ajudou o Eduardo Souto [de Moura], e mais tarde outros arquitectos, não interessa que estilisticamente não tenham a ver com ele. Parece-me que a questão agora é entre aqueles que tentam não ser tão marcadamente influenciados pelo Álvaro. Há um conjunto de bons arquitectos jovens que embora tenham respeito pelo Álvaro tentam escapar da sua influência. Ao mesmo tempo, Siza continua a seguir a sua própria mestria.

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